quinta-feira, 23 de outubro de 2014

BREVES REFLEXÕES SOBRE A PARTICIPAÇÃO DO EXÉRCITO NA GUERRA DE CANUDOS










(Registro - R. Dantas)



A guerra fratricida de Canudos (Nov/1896 – Out/1897), para além do assustador número de mortos, feridos, inválidos - máculas impagáveis para o cotidiano logo depois vivenciado pelas comunidades sertanejas que viviam no entorno do insurrecto Arraial do Belo Monte (Canudos) -, deixou, como inaceitável e triste legado, a incompetente e violenta participação do Exército Republicano Brasileiro, consignada, dentre outros desmandos, na desorganização das operações militares, na ambição e vaidade desmedidas de muitos de seus comandantes no campo da luta e, ainda, no vil preconceito protagonizado pela grande maioria de seus efetivos. É que comandantes e comandados destilaram, sem zelos, as suas raivosas discriminações, tanto em relação à região em que desastradamente atuaram e, com semelhante intensidade, quanto ao tratamento dispensado aos combatentes conselheiristas, como de resto aos demais sertanejos com os quais se debateram.

No que pese toda a arrogância e o exagerado otimismo com que as tropas partiram da Capital Federal (Rio de Janeiro) e de outras capitais da recém-fundada “República da Espada” (no sertão operaram efetivos militares de dezessete estados brasileiros!), foram necessárias quatro expedições e quase onze meses para a conquista definitiva da cidadela sagrada de Canudos, expedições que, apesar de melhor municiadas e contando com maior número de contendores em relação aos guerreiros sertanejos, acumularam desesperadoras e vergonhosas derrotas, que causaram espanto e desmesurado ódio no seio das elites políticas, religiosas, econômicas e, especialmente, militares. Aliás, vale ressaltar que – como muito se disse quando da grave contenda – no sertão da Bahia esteve presente a chamada “fina flor” do Exército Republicano Brasileiro: seus muitos coronéis, alguns generais e até o então Ministro da Guerra, o Marechal Carlos Machado Bittencourt.

Muitos foram os fatos e circunstâncias que comprovaram esta negativa investida armada contra o solidário e populoso arraial (aproximadamente trinta mil pessoas!), plantado às margens do histórico rio Vaza Barris, que provia a comunidade de Antônio Conselheiro, este andarilho incansável, o fervoroso peregrino que, tendo padecido sofrimentos no sertão do Ceará - onde nasceu em 1830 e batizado Antônio Vicente Mendes Maciel - percorreu os ínvios caminhos nordestinos, quando distribuiu conselhos, ajuntou o povo pobre para rezar, pregou a doutrina católica, cavou poços e cacimbas, alevantou muros de cemitérios e construiu igrejas. Passado o tempo das andanças, fincou o seu gasto cajado no sertão da Bahia, em terras da antiga e abandonada Fazenda Canudos, aí fundando, em junho de 1893, o seu “Império do Belo Monte”, já acompanhado de fiel e numeroso séquito.

As duas primeiras expedições sequer vislumbraram as torres da Igreja Nova do Belo Monte. A primeira, comandada pelo Tenente Manoel Pires Ferreira e com um efetivo de 104 praças, tendo partido da cidade de Juazeiro, após empreender longa e sofrida viagem pela catinga intransitável, quando acantonada na Vila de Uauá, portanto ainda distante do seu alvo principal, enfrentou, em novembro de 1896, renhida batalha com os combatentes conselheiristas, os quais ali chegaram entoando cânticos religiosos, portando cruzes, imagens, algumas armas de caça, machados e cacetes, sob o comando austero de João Abade, o então Chefe da Guarda Católica Conselheirista, filho da cidade de Tucano. Segundo o relato do próprio comandante expedicionário, Tenente Pires Ferreira, os conselheiristas “vieram para guerra como poderiam ter vindo para alguma procissão ou ato religioso”. Apesar das consideráveis perdas verificadas no lado conselheirista, talvez em razão da perda de seus dois guias e do surto repentino que teria acometido ao único médico da expedição momentaneamente desbaratada, somando-se a isso certamente a rudeza do solo e o clima abrasante, o citado comandante reuniu sua tropa assustada e ordenou a retirada, retornando, constrangido, ao seu local de origem.

                                              

                                               (Registro - R. Dantas)

A segunda expedição, organizada imediatamente após o fracasso da primeira, partindo de Queimadas e acantonando brevemente em Monte Santo (ambas as vilas se tornaram, naqueles dias conturbados, as bases primaciais das forças militares em operação no sertão baiano), recebeu o comando não mais de um oficial Tenente, mas de um Major, o militar Febrônio de Brito. Com um efetivo triplicado, padeceu dois virulentos ataques dos conselheiristas: o primeiro, na Serra do Cambaio; e o segundo, na antiga Lagoa do Cipó, que depois do sangrento embate, passaria a ser chamada de Lagoa do Sangue. Tal foi a carnificina vivenciada nas referidas batalhas e, sobretudo, a excelência da tática dos sertanejos em luta, ensejada nos movimentos intermitentes de “fustigamento à tropa”, que o resultado configurou igualmente desastroso para a expedição. Destes dias de janeiro de 1897 jamais o Major Febrônio de Brito esqueceria enquanto vivo permaneceu, já que, razão de sua inaceitável retirada da contenda, e tal como o Tenente Pires Ferreira sem sequer cumprir com o seu objetivo de atacar Canudos, aquele graduado oficial foi duramente criticado, recebendo a alcunha nada honrosa de “Major Fujão”. Para ilustrar o fato, o próprio Major Febrônio, em seu relato de combate, atestara ter dizimado 600 conselheiristas e apenas perdido dez de seus briosos soldados! Números certamente incompreensíveis para o crédito de seus indignados superiores! Então, quais razões embasaram a decisão de retirada?

Somente a “invencível”, numerosa e tão ovacionada terceira expedição militar alcançaria, pela primeira vez, as cercanias do arraial resistente e até dominaria, durante algumas horas, mas sob cerrado fogo e de forma açodada, alguns de seus periféricos barracos. Tal fora a revolta na Caserna e a indignação de quase toda a sociedade, insuflada pelos jornais e provocada pelos políticos mais radicais em face da derrota de Febrônio, que coube ao renomado e fanático militar florianista, o Coronel Antônio Moreira Cesar, alcunhado “Corta-Pescoço”, o comando dos quase 1.200 efetivos da tropa. Os sertanejos testemunhariam a empáfia e o destempero deste oficial da Arma da Infantaria, engenheiro militar, que vociferava em todos os passos de sua longa caminhada de Salvador até os inóspitos rincões sertanejos de que “traria a cabeça do Conselheiro para exposição nas ruas da Capital Federal” e que “tão somente receava que o beato transgressor, ao saber de sua presença no sertão para combatê-lo, evadisse amedrontado antes mesmo de sua chegada em Canudos”.

Triste, entretanto, seria o destino deste compulsivo militar. Atingido gravemente nos arredores da cidadela conselheirista, logo no início de sua inadequada e apressada investida, expiraria numa pobre cabana sertaneja, na fria madrugada do mês de março de 1897. Contribuíram, provavelmente, para a capitulação precoce da expedição o cansaço da tropa – havia empreendido exaustiva marcha e, por isso, carecia de descanso e rancho - e a incompetência de não ter sido feito, como se deveria, o anterior reconhecimento do terreno em que operaria. A rota fora a maior cumprida das expedições já enviadas: Queimadas, Monte Santo, Cumbe (hoje, cidade de Euclides da Cunha), Rosário, Umburanas e Canudos. A dupla notícia da derrota da celebrada expedição, mas, sobretudo, da morte de seu laureado comandante na inditosa refrega, causou verdadeira comoção nacional. Vários tumultos, quebra-quebras, empastelamento de jornais reconhecidos monarquistas e até o assassinato de um renomado jornalista nas ruas do Rio de Janeiro, Gentil de Castro, agitaram violentamente o país. Dizia-se à viva voz: “República em perigo!”.



                                                   (Registro - R. Dantas)


Imediatamente formou-se a quarta expedição militar a ser enviada para Canudos. Com os seus preparativos iniciados desde o mês de abril, somente em junho de 1897 a expedição chegaria, com alguns percalços, nos arredores de Canudos, mais precisamente no Alto da Favela ou Morro do Barro Vermelho. Configurou-se no maior ajuntamento de efetivos para uma guerra – bom lembrar, endógena! – na história militar da nação brasileira. Esta grandiosa expedição foi, para sorte de seus componentes e para o futuro do governo brasileiro, dividida em duas grandes colunas, compostas cada qual com três batalhões, a saber: à primeira coluna, que marchou de Queimadas e Monte Santo até Canudos, coube o comando do General Silva Barbosa; a segunda, que partiu de Aracaju e São Cristóvão, no vizinho estado de Sergipe, tendo chegado, via Jeremoabo, a Canudos, teve como comandante o General Claudio do Amaral Savaget. O comandante-em-chefe de todo o efetivo foi o General Artur Oscar Guimarães, oficial de extensa ficha no Exército.

Além de padecer os frequentes fustigamentos dos guerreiros de Conselheiro, da mesma forma a carência de água e as atribulações do clima abrasante em solo desconhecido e rudemente esturricado, a expedição, atraída inteligentemente pelos sertanejos para o referido morro, neste sofreria as piores agruras de seu tortuoso itinerário, já que tendo a sua “cauda” apartada dos corpos principais da tropa, portanto burramente desprotegida, sofreria o assalto ao seu comboio (munições de guerra e de boca) no Vale das Umburanas, localidade próxima ao Alto da Favela. Não fosse a outra rota escolhida pela segunda coluna (Sergipe/Bahia), certamente incerto teria sido o destino do imenso efetivo militar, vendo-se, como afinal de deu, sufocado, sem armas, água e alimentos, pelos conselheiristas. A segunda coluna, que também enfrentou duras escaramuças na Serra do Cocorobó e nas localidades de Macambira e Trabubu, sítios próximos ao arraial de Canudos, salvaria dramaticamente a primeira.

No entanto, conforme foi dito acima, apenas num sombrio entardecer de outubro dar-se-ia o trágico final dessa guerra fratricida, sendo, portanto, necessários quase quatro meses de ataques mal conduzidos e de vergonhosos recuos, de muitas perdas e sofrimentos inomináveis, para a conquista definitiva do arraial sertanejo. Metralhadoras, balas de canhões e até de querosene, granadas, fuzis, facas e facões, enfim, a todo armamento disponível se recorreu, desesperadamente, para o alcance do objetivo político-militar de se destruir a “Tróia de Barro”. Porém, o pior dos crimes ainda seria cometido pelos efetivos militares, absurdamente quando rendidos e já feitos prisioneiros os conselheiristas: a covarde “gravata vermelha”, ou seja, o vil degolamento! Feito o acordo da rendição entre as partes beligerantes, um código de guerra foi gravemente desrespeitado, quebrado criminosamente pelos comandantes das forças militares. Premido pelo seu sentimento de revolta, o jovem acadêmico de medicina, Alvim Martins Horcades, que ao teatro da guerra voluntariamente se apresentara com o valoroso objetivo de atender aos inúmeros feridos, deixou, em seu livro “Descrição de uma viagem a Canudos”, poucos anos após o grande conflito, o seu corajoso depoimento: “Em Canudos foram degolados quase todos os prisioneiros”!



                                                (Registro - R. Dantas)

Homens estropiados, velhos incapazes e doentes, mulheres esquálidas e até inocentes crianças foram covardemente degolados. Algumas poucas mulheres foram preservadas, mas sendo algumas seviciadas e outras obrigatoriamente tornadas prostitutas, levadas para a cidade de Alagoinhas. Os relatos produzidos pelos membros do Comitê Patriótico da Bahia, cujo líder maior foi Lélis Piedade, são dramáticos quanto ao estado deplorável dessas sertanejas na referenciada municipalidade. Crianças – pejorativamente alcunhadas pelos militares de “jaguncinhos” – foram arrancadas dos seios de suas desesperadas mães, cujos pais pereceram lutando, e levadas por alguns militares como se fossem “brindes” pela vitória finalmente alcançada! Eis a dita “civilidade” dos sulistas republicanos!

Canudos pereceu no entardecer do dia 05 de outubro de 1897. Sem dúvida, representou e ainda muito representa enquanto maior movimento popular da história social brasileira.

Roberto Dantas




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