quarta-feira, 8 de outubro de 2014

UM CORDELZINHO


TEM CORNO NO RECINTO

E o Cabra adentrou ao recinto,
berrando que nem bode faminto,
e variando das pernas, caindo,
logo gritou: moço vá me servindo
uma cachaça com fel de paca,
porque hoje eu passo a faca
no primeiro que vié vindo.

O atendente serviu temeroso,
tremendo até o fedegoso,
prevendo a desdita anunciada.
Derramou a “seleta” desejada
tomado de todo espanto.
O sujeito deu gole pro santo
e se escorou na cadeira aveludada.

Pense numa coisa embaraçosa,
que nem cascavel tinhosa
pronta pra dar seu bote!
É que o assento em questão,
de nobre madeira e almofada,
vermelha e toda bordada,
era cativa do Manelão.


Esse jagunço do Doutor Palma
vivia a despachar alma
pro além desconhecido:
alma de filho mal parido,
alma de corno conformado.
Era um matuto avantajado,
parecia um touro ensandecido.

E o sujeito ali assentado,
tirou seu chapéu encourado
regalando-se cheio de razão.
O serviçal abaixou no balcão
prevendo a cena que daria,
pois triste seria o dia
daquele sujeito falastrão.

Mas o home ali permanecia
tragando o que lhe apetecia,
bufando alto e fedorento.
Coçou seu olho remelento,
xingou um caboclo ouriçado
que na bodega havia entrado
devagar e desatento.

Decorridos uns 10 minutos,
um entra e sai de matutos
tomou conta do ambiente.
Zé Cuiúda e seu parente
parlamentavam bem na porta.
E Cassiano “Boca-Torta”
assentou-se bem de frente.

Percebendo o bêbado errante
levantou-se no mesmo instante
e correu pra rua a fofocar.
E não é que Manelão entra no bar!
Fez-se um silêncio tenebroso
que nem um fantasma misterioso
teria coragem de assustar.

Manelão vendo o Cabra babado
no seu trono refestelado
puxou da faca e esbravejou:
será que hoje o Demo enviou
um corno para eu dar cabo?
Levanta daí pra eu sangrar seu rabo
que até sua bosta já enguiou!

Foi copo caindo, cadeira virada,
home correndo, bebida largada,
nem o bodegueiro apareceu.
Até o ceguinho se estremeceu
matutando com sua bengala,
tropeçando e quase sem fala,
debaixo da mesa se meteu.

Mas o ousado do sujeito,
já de pé e meio sem jeito,
perguntou quem ali berrava.
Manelão sedento atinava,
era jagunço frio e arteiro,
mirando seu golpe certeiro
naquela veia que esgoelava.

Tomado de raiva e razão,
assim pensou Manelão:
cangote de bêbado é mior,
treme que nem puta no amor,
jorra que nem mina d’água.
A gente sangra sem mágoa
e depois brinda sem temor.

O sujeito antes arretado,
percebendo o aço empinado
puxou conversa, quis assunto.
Pediu clemência ao jagunço:
tenha dó Meu Senhor, não me corte,
pois triste já é minha sorte
que não mereço virar presunto!

Traído pela aquela bandida,
que desafortunou minha vida,
tornando-me desavergonhado.
E para piorar o meu estado
trepou com o sacristão da igreja,
o quá matei sem peleja,
apois era um afeminado!

Veja que corno sou eu,
chifrado por quem sempre deu
o seu fedegoso arrombado.
Agora sou um home marcado
que vive fugindo e embebedando,
por onde chego ou vou passando,
ouço o meu nome maculado.

Manelão gargalhou exagerado,
gritou pro povo extasiado,
dizendo: esse é o marido fuinha
que aquela triste bichinha
papou sua muié safada.
Ele é o Zé da Malhada,
Cabra mole de Dona Santinha.

Faz tempo que já é brocha,
que não dá conta de arrocha,
que não empina mais a binga.
Vou meter minha seringa
de aço forte e brilhante
pra mode sentir num instante
que chifre logo se vinga!

Aí o falastrão acabrunhado
baixou a cabeça humilhado
e ofertou cachaça a Manelão.
Falou manso, ajoelhou no chão
rogando à Deus e a Maria
um milagre, a serventia
de escapar do jagunção.

Mas Manelão insatisfeito,
batendo com a mão no peito
empurrou o corno medroso.
Sentou na cadeira garboso,
aprumou um cigarro no beirço,
mandou o infeliz puxar teirço,
gozando do bêbado fogoso:

ver-se logo que é mofino,
treme feito um menino
diante de uma assombração.
Não vou gastar meu facão,
voismicê morrerá de tiro,
só vai soltar um suspiro
como apetece a um cagão.

De repente uma trovoada
rugiu por cima da latada
espantando inté Manelão.
Derribou tudo no balcão.
Zé Malhada fugiu calado,
num passo atabalhoado
escafedeu na escuridão.

É que o fifó tinha apagado,
e todo o povo avexado
correu sem direção.
Gritou o cego Janjão,
Zé Cuiúda tapou os ouvido,
Cassiano duro e aturdido
verteu mijo ali no chão.

Passada a tempestade,
a noite engoliu a cidade
com uma brisa poeirenta.
Manelão abrindo as venta
rosnou feito cão celerado.
Queria é ter sangrado
a criatura pestilenta.

Pelo recinto preservado
o bodegueiro amansado
chamou por Deus em louvação.
Assim termina a história
daquele sujeito sem glória
que virou corno no sertão.


R. Dantas

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