IGREJA MATRIZ DE UAUÁ / IGREJA MATRIZ DE MONTE SANTO
As históricas
vilas sertanejas de Monte Santo e Uauá
conservam, em sua rica memória, marcas indeléveis por terem sido cenários
primaciais do grande e dramático conflito de Canudos, transcorrido no último
quartel do século XIX, cujos exemplos exponenciais, consubstanciados na
inquebrantável fé e na incansável resistência para a luta, foram o seu respeitado
líder, o peregrino Antônio Conselheiro (1),
e o seu numeroso séquito (2). A
primeira vila transformou-se em principal base operacional das tropas
republicanas. Na segunda deu-se o chamado “1º fogo” da Guerra de Canudos, onde
se destacaram o chefe da Guarda Católica Conselheirista, João Abade, e o
Tenente Pires Ferreira, então comandante da 1ª Expedição Militar (3) enviada para a destruição do
arraial insurrecto.
Falar de Monte
Santo - que à primeira vista se desnuda como se um grande presépio a céu aberto
- é sentir-se abraçado pela imponente obra do Frei Apolônio de Tody (4), edificada lá pelos idos distantes
do século XVIII, portanto a Santa Cruz da Serra do Piquaraçá, majestoso santuário
que também encantou ao resistente peregrino, guia inconteste dos
mal-aventurados irmãos sertanejos, que afinal o reformou, com o contributo de
tantos fiéis, quando de sua passagem, já no século XIX, para os sertões de
Canudos. A cidade, ainda hoje, acolhe a tantos romeiros, penitentes e
visitantes advindos das mais díspares e longínquas localidades (5).
Monte Santo seduziu
ao ícone do cinema novo brasileiro, Glauber Rocha, figurando como um de seus
preferidos cenários, assim como encantou a tantos artistas, escritores, produtores
culturais e a diversas outras personalidades. Monte Santo do Pagador de
Promessas e da passagem, em suas cercanias, do famoso e temido cangaceiro Virgulino
Lampião, conforme os dramáticos testemunhos de seu Herval Santana, do Sítio do Quirinquinqual
e do saudoso Zé Burrego, do histórico Povoado do Acaru (6).
Monte Santo da
belíssima Pedra do Acaru, onde o fole, o triângulo e a zabumba, harmonicamente
compassados, acompanham as lindas cantorias de seu Terno de Reis. Acaru,
humilde povoado por onde transitaram as tropas sitiantes com destino a Canudos,
onde também residiu, por quase cem anos, “Seu Zé de Né”, que, visivelmente emocionado,
discorria sobre as mazurcas, os lundus, as tiradas de reis, os sambas de
umbigada e os suingues de tempos que parecem não mais voltar, todavia bem
guardados na memória da gente do lugar.
Monte Santo,
modesta Vila que, à época da guerra fratricida de Canudos, vendo-se abruptamente
transformada em quartel general das desastradas operações militares, hospedou
ao laureado escritor Euclides da Cunha e ao então Ministro da Guerra, o
Marechal Carlos Machado Bittencourt. Monte Santo das imponentes Pedras da Onça,
Vermelha, Jabucunã e Testa Branca; da bucólica Passagem do Trapagó; do recanto
natural da Prainha da Tapera, desenhada ternamente pelo curso das serenas águas
do Rio Cariacá. Monte Santo, também, das suas vetustas e simpáticas bordadeiras
de fuxico e de panos de mesa, dos acurados ceramistas, dos vaqueiros aboiadores,
dos tocadores de pífaros, dos zabumbeiros e da jovem Quadrilha Junina “A Volta
da Asa Branca”, enfim de tantas outras belas expressões culturais e artísticas,
nascidas nesses sertões sofridos, mas resistentes.
Perscrutando ou reportando-se as genuínas
produções culturais dos sertões baianos, certamente que a histórica cidade de Uauá detém merecido destaque. Os
acolhimentos generosos de sua gente e a qualidade de seus artistas fazem desta
modesta cidade um recanto enternecedor das mais belas expressões culturais
sertanejas, constituindo-se, como se costuma dizer na região, numa terra abençoada,
onde os vagalumes parecem transformá-la, com os seus brilhos tão sutis, numa
perene fonte de inspiração! Esta
municipalidade, dentre poucas do semiárido baiano, mantém vivas as suas
tradições, sobretudo quando dos festejos juninos. É reconhecida, no Brasil,
como a capital do bode e dos doces e saborosos umbus.
Em qual lugar, senão em Uauá, pode-se
desfrutar das belíssimas composições, da terna poesia, da plasticidade cênica,
das vozes inconfundíveis, das batidas compassadas e dos acordes deslumbrantes
de gente como Zé de Auto (Pé-de-Bode); Cavachão (Cantador e Poeta Popular); De
Assis, Romarinho e Renam Mendes (Sanfoneiros), Thiago da Flauta; Bosco do
Realejo; Marcus Canudos, Claudio Barris, Zecrinha e Nilton Freitas (Cantores e
Compositores); Débora e Lulu (Cantoras); Ricardo Dom, Alair, Menino Alan e Jorjão
(Zabumbeiros); Zé Calu, Max Ribeiro e Pedro Peixinho (Compositores); BGG (Poeta
Popular/Cordelista), Petinha (Poetisa); Victor Fidel (poeta e designer), as
Ciganas da Lagoa do Pires; e os aboiadores que entoam seus lamentos viscerais a
cada São João, e, ainda, vislumbrar a arte produzida pelo bico de pena mágico
de Gildemar Sena?
Uauá, também, das singelas alvoradas
juninas, quando a viola, a sanfona, o pé-de-bode, o banjo, a zabumba, o
triângulo, os repiques e os pífaros, irmanados e harmônicos, ao pé da estátua
de São João Batista, abraçam e saúdam, com tanta alegria e naturalidade, a
todos os presentes, sejam filhos da terra ou não, num amálgama tão ditoso. Onde,
senão em Uauá, terra em que o guerreiro João Abade fez história, pode-se dispor
da generosidade e da prodigiosa memória de um velho sábio como o Coronel
Jerônimo Ribeiro (7)?
Entretanto, os
sertões ainda se ressentem, triste e absurdamente, de um olhar mais
compromissado e, sobretudo, mais justo das ditas autoridades constituídas e do
apoio efetivo das instituições e agências financiadoras. Já é mesmo inaceitável
a miopia dessa gente litorânea para com os sertões baianos, como de resto os
sertões nordestinos, apesar de toda a sua riqueza cultural, da sua
significativa e, às vezes, dramática contribuição para a história desse país,
das reconhecidas hospitalidade e fé de seu povo, da intrigante expressividade
de seu bioma, a caatinga, pois que configurado, seja terna seja agressivamente,
pelas cabeças-de-frade, alecrins, macambiras, facheiros, umbuzeiros, juazeiros,
mandacarus, palmas, favelas, barrigudas, xiquexiques, enfim por tantas outras
cativantes espécies. Premente a valorização das autênticas expressões e
linguagens culturais sertanejas, pois que - dadas a gravidade dos fatos e a
impertinência de alguns escusos interesses em jogo – elas têm sido equivocadamente
substituídas, portanto preteridas, por outros “estilos” ou “ritmos”, em
especial quando da ocorrência das grandes efemérides tradicionalmente
vinculadas às festividades juninas!
Apesar das reais
dificuldades estruturais por que passam a maioria das cidades sertanejas (8), dos desconhecimentos das
autoridades (esferas estadual e federal) acerca dos diversos atrativos
naturais, históricos, culturais e religiosos existentes na região, há de se conceber
e de se promover ações para o desenvolvimento do turismo sertanejo (9), entendido como de base local,
sustentável, ações, não há dúvida, que já se configuram tanto indispensáveis quão
criteriosas, pois imperiosa é a parceria/diálogo com as comunidades envolvidas
e imprescindíveis são os compromissos a serem assumidos pelos chamados poderes
constituídos para a sua exitosa elaboração e conseqüente implantação.
Portanto, são
estudos, reflexões, ações para um turismo responsável, de fundamentação
histórico-cultural, que possa, com qualidade e sem prejuízos para a cultura
local, contribuir não somente para a auto-estima, mas, da mesma forma, para a
melhoria dos indicadores sociais dos sertanejos, mais particularmente os relacionados
a emprego e renda.
Roberto Dantas
Historiador/Documentarista
UNEB – Salvador / Fone: 71-9977. 9807 / Email: betodantas.canudos@gmail.com
NOTAS
1 – Nascido Antônio
Vicente Mendes Maciel, em 1830, na Vila de Quixeramobim, na Província do Ceará,
transformou-se no peregrino Antônio Conselheiro, tendo palmilhado incansavelmente
os sertões nordestinos, reformando ou edificando igrejas e cemitérios, cavando
poços e cacimbas, distribuindo conselhos fundamentados numa moral rígida
católica e sempre acolhendo aos seus chamados “mal-aventurados” irmãos
sertanejos. Em junho de 1893, já acompanhado de numeroso séquito, deu fim as
suas andanças, e funda, em terras da antiga Fazenda Canudos, banhadas pelo Rio
Vaza-Barris nos, sertões baianos, o seu arraial sagrado, o qual batizou de
Bello Monte.
2 – Compunham o
numeroso séquito conselheirista os retirantes nordestinos espoliados pelos
grandes proprietários de terras, devotos fervorosos, diversos trabalhadores e
doentes desassistidos. Somaram-se a estes, sobretudo após a edificação do
arraial do Bello Monte, indivíduos em dívidas com a justiça, ex-criminosos,
ex-jagunços e desertores das tropas oficiais, quase sempre em busca do perdão
de suas faltas, além de muitos negros ex-escravos e índios. Grandes destaques
deste séquito, em especial quando do período da guerra fratricida (1896/97)
foram Pajeú, Macambira, João Abade, Vicentão, Marciano de Sergipe, Zé Venâncio,
Pedrão, dentre outros lutadores.
3 – Foi necessário o
envio de mais três expedições militares para, ao final de 11 meses, a
destruição definitiva do resistente arraial do Bello Monte: a 2ª, comandada pelo Major Febrônio de
Brito; a 3ª, pelo Coronel Antônio
Moreira César; e a 4ª, pelo General
Artur Oscar Guimarães, esta dividida em duas gigantescas colunas, 1ª e 2ª, respectivamente chefiadas pelos Generais Silva Barbosa e Claudio
Savaget.
4 – Religioso
capuchinho, italiano de nascimento, frei Apolônio foi convidado, em meados do
século XVIII, para rezar uma santa missão na região da Vila de Monte Santo. Em
razão da inegável aparência da Serra do Piquaraçá com o Monte Calvário, o frei,
com a ajuda dos sertanejos, fez erguer várias capelinhas ao longo da íngreme
subida, sendo que algumas em foram dedicadas às dores de Nossa Senhora e as
demais alusivas ao calvário de Jesus Cristo.
5 – Em especial
quando das celebrações da Semana Santa (março/abril) e das festividades
religiosas e culturais atinentes à Festa de Todos os Santos (31/10 a 02/11).
6 – Herval Santana,
96 anos, assistiu quando criança ao bando do cangaceiro castigar alguns
trabalhadores que, no seu próprio dizer simples “faziam a estrada”; Zé Burrego, falecido aos 98 anos em 2010,
também atestava ter presenciado, ainda adolescente, o castigo, seguido de
assassinato, do soldado Pacutia, num terreiro de uma fazenda na localidade
próxima de Patamuté. Ambos concederam ao autor entrevistas em 2009, as quais
estão devidamente gravadas (áudio-visual).
7 – Reconhecido
memorialista uauense, em especial sobre os acontecimentos alusivos à Guerra de
Canudos transcorridos em sua terra natal, do alto de seus 94 anos, com espantosa
lucidez, atende, ainda hoje, em sua casa, a todos os pesquisadores e
visitantes, carentes das mais diversas informações sobre os sertões de Canudos.
8 – Acessibilidade, ineficiência
ou mesmo inexistência de esgotamento sanitário, educação de qualidade, aumento
do consumo de drogas e da gravidez precoce, necessidade de qualificação da
mão-de-obra, em especial para o receptivo/serviços gerais em torno do setor do
turismo, etc..
9 – O projeto “Cenários
e Caminhos Históricos da Guerra de Canudos: Trilhas do Conhecimento”,
coordenado pelo autor e que teve o decisivo apoio da Petrobras, empreendeu
pesquisas em toda a região dos “Sertões de Canudos”, reconstituindo (registros
imagéticos - áudios-visuais e fotográficos - e o georreferencimento das trilhas)
os antigos caminhos, rotas, localidades, sítios, fazendas por onde transitaram
e bivacaram as tropas militares e os conselheiristas, como, também, a sua
equipe produziu breve inventário sobre as potencialidades e demandas nas
principais cidades do chamado “Palco estratégico da Guerra” (Canudos, Monte
Santo, Euclides da Cunha e Uauá), daí resultando a concepção de um Roteiro
Turístico Sertanejo, tendo como experiência-piloto a cidade de Monte Santo.
Dois produtos acadêmicos também foram feitos: uma Publicação e um Documentário
em DVD, ambos intitulados “Canudos: Novas Trilhas”, já gratuitamente
socializados nas referidas comunidades sertanejas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário