(Registro / R.Dantas - 2009)
Era o início do mês de junho de 1893, dias em que
nos sertões se costuma reverenciar a Santo Antônio, o dito “Santo
Casamenteiro”, que o incansável peregrino cearense, Antônio Conselheiro, chegava
às margens do Rio Vaza Barris, na região de Canudos, onde perecia uma antiga
fazenda e, aí, sob o inclemente sol e na presença de numeroso e devoto séquito,
bateu solenemente o seu gasto cajado sobre o solo esturricado e, com firmeza,
teria proferido algo mais ou menos assim: “aqui
termino meus tempos de andanças e aqui, nesta terra de Deus, nascerá o Império
do Bello Monte. Outros relatos orais também contam que teria findado a sua
breve fala com os seguintes dizeres: “quem
quiser ficar que fique; quem quiser ir embora que vá. Aqui enfrentarei quatro
fogos. Os três primeiros serão meus e o último eu ponho nas mãos de Deus”.
E tal profecia, queira-se ou não, materializar-se-ia no envio, entre os anos de
1896/97, a mando do notívago governo republicano instalado no país (Nov/1889),
das quatro famosas, mas, em sua maioria, desastradas expedições militares[1]
para a destruição do arraial resistente. Este ficaria mais conhecido como
Arraial de Canudos.
Antônio Conselheiro nasceu Antônio Vicente Mendes
Maciel, na pobre Vila do Campo Maior do Quixeramobim, alto sertão cearense, em
março de 1830. Tempos em que sua família, os Maciéis, travava renhidas lutas
com os poderosos Araújos, conflitos que violentamente ceifaram vidas de ambos
os clãs. Neste ambiente de intrigas, medos e privações, Conselheiro, ainda
criança, muito padeceria com a precoce perda de sua mãe e, numa seqüência
desditosa, sofreria com as alucinações de uma madrasta celerada que o castigava
gratuitamente. Seu pai, Vicente Maciel, antes um homem afeito ao trabalho -
pequeno comerciante e que lhe direcionara alguma instrução, a exemplo dos
ensinos do português, do latim e das primeiras noções de cálculos ministrados
por um exigente professor contratado -, perdeu-se nas armadilhas do álcool e do
jogo, vícios que o debilitaram e que, afinal, concorreram para a falência dos
já parcos negócios da família. Tais infortúnios, não há dúvida, macularam
sobremaneira a adolescência e a mocidade deste homem que, em breve, se tornaria
um dos mais famosos e perseguidos personagens dos sertões nordestinos, mais
especialmente dos sertões baianos.
Aos 27 anos de idade casou-se com a prima,
Brasilina Laurentina de Lima, decisão, segundo alguns relatos de parentes,
resultante de sua ingênua e arrebatadora paixão e que lhe trouxe, igualmente,
novos padecimentos, pois logo lhe atormentariam os desonrosos boatos de não lhe
ser fiel a sua fogosa e desejada esposa. Em razão da premente necessidade de
cumprir com as suas obrigações caseiras (nascera, inclusive, dois filhos da
inditosa relação), viajava freqüentemente, período difícil de labutas, durante
o qual o jovem sertanejo de tudo fez um pouco: caixeiro viajante, professor de
primeiras letras em fazendas, solicitador, rábula, etc. Ao regressar de uma
dessas empreitadas, praticamente certificou-se da infidelidade de sua
companheira, que afinal, passado pouquíssimo tempo, fugiria mesmo com um
soldado da Força Pública. Contrairia, em suas atribuladas andanças, nova e
desventurada relação com uma mulher mística, residente na localidade de Santa
Quitéria, alcunhada Joana Imaginária (vivia de esculpir imagens), a qual,
apesar de lhe dedicar pouca atenção e raros carinhos, também lhe deu um
rebento, de nome Joaquim Aprígio.
Analisando mais detidamente a infância e a
adolescência - sangrentos conflitos familiares, orfandade, violência caseira,
alcoolismo paterno, privações materiais -, bem como a mocidade de Antônio
Conselheiro – desilusões amorosas, falta de perspectivas e o conseqüente
agravamento da sua vida material –, pode-se relativamente entender a
transmutação pessoal pela qual este indivíduo passaria e que, com firmeza de
princípios e uma fé singular, logo assumiria. Desapareceu, por algum tempo, dos
olhares de todos, para tão somente virar notícia já bem longe de seu torrão
natal[2],
através de um pequeno periódico sergipano, da localidade de Estância, de nome “O Rabudo”, que o descreve como um
velho santarrão, metido numa surrada túnica azul, calçado com rudes alpercatas,
pregando e aconselhando ao povo que o escutava - e que geralmente após os seus
discursos o seguia fervorosamente -, uma rígida moral de fundamentação
católica, a todos contagiando com a sua inabalável e inegociável fé! Trazia em
seu surrão duas obras de cunho religioso: Missão
Abreviada e Horas Marianas. Era
o Conselheiro devoto de Nossa Senhora, mãe de Jesus.
Imperativo ressaltar que este andarilho, além de
suas longas pregações, ditadas, quase sempre, nas encruzilhadas dos caminhos,
nos arredores das fazendas e sítios, debaixo de árvores das praças dos pequenos
e pobres vilarejos, às vezes aos finais de tarde, às vezes durante o silêncio
misterioso das madrugadas sertanejas, muito trabalhou, braço a braço, com os
mais humildes e desassistidos sertanejos. Sempre dizia, quando das rezas,
ladainhas e conselhos, que teria de ir para onde estavam os “seus”
mal-aventurados irmãos. Daí o seu empenho e reconhecida contribuição para a
escavação de cacimbas, poços e aguadas, da mesma forma a sua freqüente
disposição para a reforma e, quando não havia nas localidades, a edificação de
igrejas e cemitérios para o povo pobre, respectivamente, orar e ser dignamente
enterrado. Por isso, ainda que tardiamente, dar-se-ia o justo reconhecimento de
suas relevantes obras sociais.
Conselheiro, tal qual quando era Antônio Vicente
Mendes Maciel, experimentaria novos e cada vez mais agudos sofrimentos. Quanto
mais crescia o seu prestígio e, como imediata conseqüência o seu séquito, mais
sofria com perseguições. Por obra dos membros do Clero Católico e de alguns
poderosos senhores da terra, padeceu duas injustas detenções (1876/86), ambas
quando se encontrava na Vila de Itapicuru, sertão da Bahia. Falsas acusações de
matricídio e de insanidade mental não foram suficientes para calar a sua voz e
nem abortar a sua obra, assim como as covardes torturas e humilhações que
sofreu no trânsito destes deslocamentos. Ao contrário! A cada retorno de suas
prisões arbitrárias recebia, em dobro, as aclamações do povo pobre sertanejo, o
que obviamente contribuía para o crescimento do número de seus seguidores.
Diferentemente dos párocos, que viviam hibernados nas casas das grandes
fazendas e que, por interesses escusos e, às vezes, pela troca de migalhas para
as suas paróquias, aquiesciam ao jogo dos poderosos proprietários, o seu
discurso coadunava-se, em perfeita harmonia, com a sua prática de obreiro
social, sempre a buscar esmolas e melhoramentos para os desvalidos e, em
especial, pela demonstração de sua vida ascética, honestamente simples e
penitente. Dormia e comia pouco. Orava incansavelmente e distribuía conselhos
aos infortunados.
Além da Igreja – que perdia vertiginosamente os
seus “fiéis” para Conselheiro – e dos latifundiários – cujos explorados
trabalhadores, portanto a já escassa mão de obra, abandonavam as obrigações e,
esperançosos, partiam para o novo Arraial do Bello Monte, Canudos – o peregrino
também foi vítima do inescrupuloso jogo político cinicamente encenado pelos
representantes das elites oligárquicas baianas, os quais não titubearam em
rotulá-lo falsa e pejorativamente. É que na Bahia duas correntes políticas se
digladiavam pela disputa do poder local[3]
e, consoante a isso, pela necessária aprovação de suas posturas pelo novo
governo republicano então inaugurado no Brasil, que destituíra o regime
monárquico. Gonçalvistas, assim
denominados os seguidores de José
Gonçalves, o ex-presidente da Província da Bahia, com o decisivo apoio do
todo poderoso Barão de Jeremoabo, Cícero Dantas Martins, grande latifundiário
daquele pedaço do sertão em que atuava o peregrino, desejavam a reconquista do
poder, naquele presente momento em mãos dos Vianistas, portanto os assim identificados asseclas de Luiz Viana, então o Governador do Estado.
Um necessário esclarecimento: com o advento da República, as províncias ganharam a denominação de estados e os seus respectivos presidentes passaram a se chamar governadores.
O contexto político nacional era constantemente
pontuado por sérias conturbações. Os chefes e os aliados do novo sistema de
poder implantado em 1889 (Republicano) se debatiam com graves revoltas[4]
e frequentes cobranças, razão dos seus próprios descaminhos e retaliações. Em
resposta, os republicanos não somente radicalizavam nas suas posturas
políticas, perseguindo e difamando aos antigos e agora desalojados monarquistas
e aos seus simpatizantes, mas, quando foi necessário, usaram também a espada e
os fuzis para reprimir os contrários. Neste ambiente de intrigas e incertezas,
de querelas as mais violentas, quando as ameaças e o jogo de interesses
prevaleciam nas relações políticas, demonstrar fidelidade ao novo regime e
denunciar, ainda que sem provas, os “traidores”, era uma comum e abominável
prática. Portanto, neste cenário violento e nebuloso, Conselheiro e sua gente
devota e trabalhadora foram maliciosamente acusados de monarquistas, ou de
mercenários dos antigos monarquistas que ocultamente os financiavam com o
desejo de retomarem o poder perdido, com o intuito de subversão da ordem
republicana recentemente proclamada.
Assim fez o dito grupo Gonçalvista, acusando ao
dirigente estadual, Luiz Viana, de ser condescendente com o peregrino e a
formação de seu “subversivo” arraial por ainda ser ele, na verdade, um
enrustido monarquista! Aliaram-se, então, contra Conselheiro e o Bello Monte
forças poderosas que conformam qualquer tripé básico de sustentação e mando de
uma sociedade: políticos, senhores da
terra e os senhores do credo! Feitas as intrigas e cobradas as
manifestações de fidelidade à República, as oligarquias locais e as elites
políticas encasteladas no poder central não mediram esforços para difamar
aquela gente e o seu idolatrado líder não somente de restauradores
monarquistas, mas, igualmente, de fanáticos, loucos degenerados, ignorantes,
broncos. Era necessário aplicar uma firme lição ao povo “bárbaro” e
“transviado” dos desconhecidos sertões e, ao mesmo tempo, ensinar o “bom exemplo”
de vida dos “civilizados” e “nobres” cidadãos da República litorânea sulista!
Antônio Conselheiro, já era de se esperar, não
abriu mão de serena e firmemente convencer sua gente a lutar e heroicamente
resistir às por ele previstas invasões do “Anticristo” [5] ao seu habitat sagrado, portanto dos
republicanos, o que se deu através das quatro expedições militares
seqüencialmente enviadas para a sua captura e, sobretudo, para a dispersão de
seu séquito e a completa destruição do seu laborioso arraial do Bello Monte.
Seja pela fé, seja pelo justo entendimento de muitos dos seus seguidores de que
livre deveria ser o acesso à terra - até porque, segundo o próprio ensinamento
do peregrino, era a terra um bem de todos, a ninguém pertencendo, pois a Deus
pertencia! – a Guerra de Canudos, dentre tantos e dramáticos eventos, legou
para a história um exemplo ímpar de luta popular. Lutadores que levavam para o
campo de batalha, com a mesma dedicação e crédito, os terços e as armas[6].
Após onze meses de sangrentos combates e milhares
de mortos e combalidos de diversos ferimentos, o Arraial do Bello Monte pereceu
no entardecer de 5 de outubro de 1897, ante as dinamites atiradas covardemente
pelos representantes da dita parte “civilizada” do país. É que poucos
conselheiristas ainda possuíam armas e, com impensável força, revidavam do seio
já ensangüentado da “Tróia de Barro” ao canhoneio ininterrupto das forças
expedicionárias. Muitos homens fatigados e gravemente feridos, velhos doentes,
mulheres e crianças maltrapilhas, todos, enfim, exaustos e famintos, morreram
asfixiados pelas bombas de querosene sobre suas cabeças arremessadas. Nos
estertores da guerra fratricida, a ordem fora expressa pelas autoridades e prontamente
acolhida pelos comandantes presentes na caatinga invadida: “não deixar pedra sobre pedra!”. Além desse absurdo “modus
operandi”, terminado o longo e dramático conflito e acordada a paz, deu-se a
famigerada “gravata vermelha”,
portanto a insana degola dos indefesos prisioneiros, a quem, inclusive, os
comandantes tinham, de viva voz, prometido a vida[7].
Crime inafiançável! Triste e violenta página perpetrada pelas autoridades
constituídas, através do seu não menos fanático e violento braço armado: o
Exército Republicano Brasileiro!
Antônio Conselheiro não viveu para testemunhar nem
a queda final de seu arraial, nem a carnificina subseqüente dos degolamentos.
Teria morrido a 22 de setembro. Eis as versões: morte por grave doença intestinal;
morte por ferimentos de granada. Seu corpo foi achado ao lado do Santuário, em
cova rasa, acompanhado de seu caderno de escritos, onde redigiu as suas famosas
prédicas. Teve a cabeça decepada para comprovação de sua captura e para ser
analisada, razão da desconfiança de ser ele um doente mental, um “grande
mentecapto”. Além da saudade e do respeito de seus fiéis seguidores e numerosos
admiradores, certamente legou a esperança de melhores dias para muitos
sertanejos, transformando-se num ícone sempre relembrado quando da
eventualidade das lutas populares neste Brasil ainda desigual porque
excludente, e quando as expressões resistência e fé sejam as bandeiras em
qualquer contexto social.
[1] A 1ª Expedição Militar, sob o comando do
Tenente Pires Ferreira, deslocou-se, em novembro de 1896, de trem de Salvador
para Juazeiro e, daí, marchou com destino ao Arraial de Canudos. Entretanto,
foi interceptada pelos Conselheiristas na localidade de Uauá, onde se deu
renhido combate. A 2ª, sob o comando do Major Febrônio de Brito, deslocou-se de
trem de Salvador para Queimadas e, após idas e vindas, marchou para Monte
Santo, com destino a Canudos. Também sequer avistou as torres da Igreja Nova do
Arraial, já que, após o célebre combate do Cambaio, foi atacada nos
Tabuleirinhos, mais precisamente na Lagoa do Cipó, de onde bateu em retirada
(jan/1897). A 3ª Expedição, comandada pelo famoso e folclórico Coronel Moreira
César, o alcunhado “Corta-Cabeças”, fez o roteiro Salvador/Queimadas (trem) e
marchou via Monte Santo, Cumbe (hoje Euclides da Cunha) até Canudos. Ao
penetrar no arraial, teve o seu comandante ferido, o qual pereceu ainda na zona
de luta. Após tal infortúnio, sofreu novos ataques dos Conselheiristas e bateu
em vergonhosa retirada (mar/1897). A 4ª e última Expedição Militar, sob o
comando do General Artur Oscar, foi dividida em duas grandes colunas: a 1ª, sob
o comando do General Silva Barbosa, fez o roteiro Salvador/Queimadas/Monte
Santo/Canudos, e a 2ª, comandada pelo General Claudio Savaget, partiu com os
seus efetivos de Aracaju e São Cristóvão (SE), aglutinou-se em Jeremoabo (BA) e
introduziu-se na região de Canudos pela Serra do Cocorobó, onde se deu violento
e longo combate. As operações desta última Expedição duraram aproximadamente
sete meses (abril/outubro de 1897).
[2] Diz a tradição popular que Conselheiro
sempre contava ter tido um sonho, no qual Deus, através do Anjo Gabriel, havia
lhe destinado a sagrada missão de edificar 25 igrejas, todavia em terras fora
do Ceará.
[3] Sobre o assunto, há o interessante artigo
da professora Consuelo Sampaio, intitulado “Canudos: o jogo das oligarquias”.
[4] Exs: Revolução Federalista (sul do país)
e a Revolta da Armada, na Baía de Guanabara.
[5] Denominação dada pelo Conselheiro e seus
seguidores à República. Os relatos atestam que nem o dinheiro republicano tinha
facilidade para circular no arraial, sendo alcunhado de “imundíça” pelos
sertanejos.
[6] Relatos dos que testemunharam a ação dos
Conselheiristas, por exemplo, no combate da Vila de Uauá, atestam que os mesmos
vieram para guerra assim como poderiam vir para uma fervorosa procissão, já que
traziam uma grande cruz de madeira, carregavam estandartes religiosos, imagens
de santos e entoavam cantos litúrgicos.
[7] Dramático e corajoso depoimento fez o
jovem acadêmico de Medicina, Alvim Martins Horcades, que para Canudos havia se
deslocado para o atendimento dos feridos, em sua obra “Descrição de uma viagem
a Canudos” (1899). Nela o acadêmico atesta o assassinato de todos os
prisioneiros, inclusive o de Antônio Beatinho, que havia negociado o acordo de
paz com o comandante Artur Oscar, tendo sido um dos primeiros a receber a dita
“gravata vermelha” nos arredores do Morro da Favela, acampamento principal das
tropas militares em Canudos.
Roberto Dantas
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