terça-feira, 7 de outubro de 2014

PEREGRINO ANTÔNIO CONSELHEIRO E CANUDOS













(Registro / R.Dantas - 2009)

Era o início do mês de junho de 1893, dias em que nos sertões se costuma reverenciar a Santo Antônio, o dito “Santo Casamenteiro”, que o incansável peregrino cearense, Antônio Conselheiro, chegava às margens do Rio Vaza Barris, na região de Canudos, onde perecia uma antiga fazenda e, aí, sob o inclemente sol e na presença de numeroso e devoto séquito, bateu solenemente o seu gasto cajado sobre o solo esturricado e, com firmeza, teria proferido algo mais ou menos assim: “aqui termino meus tempos de andanças e aqui, nesta terra de Deus, nascerá o Império do Bello Monte. Outros relatos orais também contam que teria findado a sua breve fala com os seguintes dizeres: “quem quiser ficar que fique; quem quiser ir embora que vá. Aqui enfrentarei quatro fogos. Os três primeiros serão meus e o último eu ponho nas mãos de Deus”. E tal profecia, queira-se ou não, materializar-se-ia no envio, entre os anos de 1896/97, a mando do notívago governo republicano instalado no país (Nov/1889), das quatro famosas, mas, em sua maioria, desastradas expedições militares[1] para a destruição do arraial resistente. Este ficaria mais conhecido como Arraial de Canudos.

Antônio Conselheiro nasceu Antônio Vicente Mendes Maciel, na pobre Vila do Campo Maior do Quixeramobim, alto sertão cearense, em março de 1830. Tempos em que sua família, os Maciéis, travava renhidas lutas com os poderosos Araújos, conflitos que violentamente ceifaram vidas de ambos os clãs. Neste ambiente de intrigas, medos e privações, Conselheiro, ainda criança, muito padeceria com a precoce perda de sua mãe e, numa seqüência desditosa, sofreria com as alucinações de uma madrasta celerada que o castigava gratuitamente. Seu pai, Vicente Maciel, antes um homem afeito ao trabalho - pequeno comerciante e que lhe direcionara alguma instrução, a exemplo dos ensinos do português, do latim e das primeiras noções de cálculos ministrados por um exigente professor contratado -, perdeu-se nas armadilhas do álcool e do jogo, vícios que o debilitaram e que, afinal, concorreram para a falência dos já parcos negócios da família. Tais infortúnios, não há dúvida, macularam sobremaneira a adolescência e a mocidade deste homem que, em breve, se tornaria um dos mais famosos e perseguidos personagens dos sertões nordestinos, mais especialmente dos sertões baianos.

Aos 27 anos de idade casou-se com a prima, Brasilina Laurentina de Lima, decisão, segundo alguns relatos de parentes, resultante de sua ingênua e arrebatadora paixão e que lhe trouxe, igualmente, novos padecimentos, pois logo lhe atormentariam os desonrosos boatos de não lhe ser fiel a sua fogosa e desejada esposa. Em razão da premente necessidade de cumprir com as suas obrigações caseiras (nascera, inclusive, dois filhos da inditosa relação), viajava freqüentemente, período difícil de labutas, durante o qual o jovem sertanejo de tudo fez um pouco: caixeiro viajante, professor de primeiras letras em fazendas, solicitador, rábula, etc. Ao regressar de uma dessas empreitadas, praticamente certificou-se da infidelidade de sua companheira, que afinal, passado pouquíssimo tempo, fugiria mesmo com um soldado da Força Pública. Contrairia, em suas atribuladas andanças, nova e desventurada relação com uma mulher mística, residente na localidade de Santa Quitéria, alcunhada Joana Imaginária (vivia de esculpir imagens), a qual, apesar de lhe dedicar pouca atenção e raros carinhos, também lhe deu um rebento, de nome Joaquim Aprígio.

Analisando mais detidamente a infância e a adolescência - sangrentos conflitos familiares, orfandade, violência caseira, alcoolismo paterno, privações materiais -, bem como a mocidade de Antônio Conselheiro – desilusões amorosas, falta de perspectivas e o conseqüente agravamento da sua vida material –, pode-se relativamente entender a transmutação pessoal pela qual este indivíduo passaria e que, com firmeza de princípios e uma fé singular, logo assumiria. Desapareceu, por algum tempo, dos olhares de todos, para tão somente virar notícia já bem longe de seu torrão natal[2], através de um pequeno periódico sergipano, da localidade de Estância, de nome “O Rabudo”, que o descreve como um velho santarrão, metido numa surrada túnica azul, calçado com rudes alpercatas, pregando e aconselhando ao povo que o escutava - e que geralmente após os seus discursos o seguia fervorosamente -, uma rígida moral de fundamentação católica, a todos contagiando com a sua inabalável e inegociável fé! Trazia em seu surrão duas obras de cunho religioso: Missão Abreviada e Horas Marianas. Era o Conselheiro devoto de Nossa Senhora, mãe de Jesus.

Imperativo ressaltar que este andarilho, além de suas longas pregações, ditadas, quase sempre, nas encruzilhadas dos caminhos, nos arredores das fazendas e sítios, debaixo de árvores das praças dos pequenos e pobres vilarejos, às vezes aos finais de tarde, às vezes durante o silêncio misterioso das madrugadas sertanejas, muito trabalhou, braço a braço, com os mais humildes e desassistidos sertanejos. Sempre dizia, quando das rezas, ladainhas e conselhos, que teria de ir para onde estavam os “seus” mal-aventurados irmãos. Daí o seu empenho e reconhecida contribuição para a escavação de cacimbas, poços e aguadas, da mesma forma a sua freqüente disposição para a reforma e, quando não havia nas localidades, a edificação de igrejas e cemitérios para o povo pobre, respectivamente, orar e ser dignamente enterrado. Por isso, ainda que tardiamente, dar-se-ia o justo reconhecimento de suas relevantes obras sociais.

Conselheiro, tal qual quando era Antônio Vicente Mendes Maciel, experimentaria novos e cada vez mais agudos sofrimentos. Quanto mais crescia o seu prestígio e, como imediata conseqüência o seu séquito, mais sofria com perseguições. Por obra dos membros do Clero Católico e de alguns poderosos senhores da terra, padeceu duas injustas detenções (1876/86), ambas quando se encontrava na Vila de Itapicuru, sertão da Bahia. Falsas acusações de matricídio e de insanidade mental não foram suficientes para calar a sua voz e nem abortar a sua obra, assim como as covardes torturas e humilhações que sofreu no trânsito destes deslocamentos. Ao contrário! A cada retorno de suas prisões arbitrárias recebia, em dobro, as aclamações do povo pobre sertanejo, o que obviamente contribuía para o crescimento do número de seus seguidores. Diferentemente dos párocos, que viviam hibernados nas casas das grandes fazendas e que, por interesses escusos e, às vezes, pela troca de migalhas para as suas paróquias, aquiesciam ao jogo dos poderosos proprietários, o seu discurso coadunava-se, em perfeita harmonia, com a sua prática de obreiro social, sempre a buscar esmolas e melhoramentos para os desvalidos e, em especial, pela demonstração de sua vida ascética, honestamente simples e penitente. Dormia e comia pouco. Orava incansavelmente e distribuía conselhos aos infortunados.

Além da Igreja – que perdia vertiginosamente os seus “fiéis” para Conselheiro – e dos latifundiários – cujos explorados trabalhadores, portanto a já escassa mão de obra, abandonavam as obrigações e, esperançosos, partiam para o novo Arraial do Bello Monte, Canudos – o peregrino também foi vítima do inescrupuloso jogo político cinicamente encenado pelos representantes das elites oligárquicas baianas, os quais não titubearam em rotulá-lo falsa e pejorativamente. É que na Bahia duas correntes políticas se digladiavam pela disputa do poder local[3] e, consoante a isso, pela necessária aprovação de suas posturas pelo novo governo republicano então inaugurado no Brasil, que destituíra o regime monárquico. Gonçalvistas, assim denominados os seguidores de José Gonçalves, o ex-presidente da Província da Bahia, com o decisivo apoio do todo poderoso Barão de Jeremoabo, Cícero Dantas Martins, grande latifundiário daquele pedaço do sertão em que atuava o peregrino, desejavam a reconquista do poder, naquele presente momento em mãos dos Vianistas, portanto os assim identificados asseclas de Luiz Viana, então o Governador do Estado. Um necessário esclarecimento: com o advento da República, as províncias ganharam a denominação de estados e os seus respectivos presidentes passaram a se chamar governadores.

O contexto político nacional era constantemente pontuado por sérias conturbações. Os chefes e os aliados do novo sistema de poder implantado em 1889 (Republicano) se debatiam com graves revoltas[4] e frequentes cobranças, razão dos seus próprios descaminhos e retaliações. Em resposta, os republicanos não somente radicalizavam nas suas posturas políticas, perseguindo e difamando aos antigos e agora desalojados monarquistas e aos seus simpatizantes, mas, quando foi necessário, usaram também a espada e os fuzis para reprimir os contrários. Neste ambiente de intrigas e incertezas, de querelas as mais violentas, quando as ameaças e o jogo de interesses prevaleciam nas relações políticas, demonstrar fidelidade ao novo regime e denunciar, ainda que sem provas, os “traidores”, era uma comum e abominável prática. Portanto, neste cenário violento e nebuloso, Conselheiro e sua gente devota e trabalhadora foram maliciosamente acusados de monarquistas, ou de mercenários dos antigos monarquistas que ocultamente os financiavam com o desejo de retomarem o poder perdido, com o intuito de subversão da ordem republicana recentemente proclamada.

Assim fez o dito grupo Gonçalvista, acusando ao dirigente estadual, Luiz Viana, de ser condescendente com o peregrino e a formação de seu “subversivo” arraial por ainda ser ele, na verdade, um enrustido monarquista! Aliaram-se, então, contra Conselheiro e o Bello Monte forças poderosas que conformam qualquer tripé básico de sustentação e mando de uma sociedade: políticos, senhores da terra e os senhores do credo! Feitas as intrigas e cobradas as manifestações de fidelidade à República, as oligarquias locais e as elites políticas encasteladas no poder central não mediram esforços para difamar aquela gente e o seu idolatrado líder não somente de restauradores monarquistas, mas, igualmente, de fanáticos, loucos degenerados, ignorantes, broncos. Era necessário aplicar uma firme lição ao povo “bárbaro” e “transviado” dos desconhecidos sertões e, ao mesmo tempo, ensinar o “bom exemplo” de vida dos “civilizados” e “nobres” cidadãos da República litorânea sulista!

Antônio Conselheiro, já era de se esperar, não abriu mão de serena e firmemente convencer sua gente a lutar e heroicamente resistir às por ele previstas invasões do “Anticristo” [5] ao seu habitat sagrado, portanto dos republicanos, o que se deu através das quatro expedições militares seqüencialmente enviadas para a sua captura e, sobretudo, para a dispersão de seu séquito e a completa destruição do seu laborioso arraial do Bello Monte. Seja pela fé, seja pelo justo entendimento de muitos dos seus seguidores de que livre deveria ser o acesso à terra - até porque, segundo o próprio ensinamento do peregrino, era a terra um bem de todos, a ninguém pertencendo, pois a Deus pertencia! – a Guerra de Canudos, dentre tantos e dramáticos eventos, legou para a história um exemplo ímpar de luta popular. Lutadores que levavam para o campo de batalha, com a mesma dedicação e crédito, os terços e as armas[6].

Após onze meses de sangrentos combates e milhares de mortos e combalidos de diversos ferimentos, o Arraial do Bello Monte pereceu no entardecer de 5 de outubro de 1897, ante as dinamites atiradas covardemente pelos representantes da dita parte “civilizada” do país. É que poucos conselheiristas ainda possuíam armas e, com impensável força, revidavam do seio já ensangüentado da “Tróia de Barro” ao canhoneio ininterrupto das forças expedicionárias. Muitos homens fatigados e gravemente feridos, velhos doentes, mulheres e crianças maltrapilhas, todos, enfim, exaustos e famintos, morreram asfixiados pelas bombas de querosene sobre suas cabeças arremessadas. Nos estertores da guerra fratricida, a ordem fora expressa pelas autoridades e prontamente acolhida pelos comandantes presentes na caatinga invadida: “não deixar pedra sobre pedra!”. Além desse absurdo “modus operandi”, terminado o longo e dramático conflito e acordada a paz, deu-se a famigerada “gravata vermelha”, portanto a insana degola dos indefesos prisioneiros, a quem, inclusive, os comandantes tinham, de viva voz, prometido a vida[7]. Crime inafiançável! Triste e violenta página perpetrada pelas autoridades constituídas, através do seu não menos fanático e violento braço armado: o Exército Republicano Brasileiro!

Antônio Conselheiro não viveu para testemunhar nem a queda final de seu arraial, nem a carnificina subseqüente dos degolamentos. Teria morrido a 22 de setembro. Eis as versões: morte por grave doença intestinal; morte por ferimentos de granada. Seu corpo foi achado ao lado do Santuário, em cova rasa, acompanhado de seu caderno de escritos, onde redigiu as suas famosas prédicas. Teve a cabeça decepada para comprovação de sua captura e para ser analisada, razão da desconfiança de ser ele um doente mental, um “grande mentecapto”. Além da saudade e do respeito de seus fiéis seguidores e numerosos admiradores, certamente legou a esperança de melhores dias para muitos sertanejos, transformando-se num ícone sempre relembrado quando da eventualidade das lutas populares neste Brasil ainda desigual porque excludente, e quando as expressões resistência e fé sejam as bandeiras em qualquer contexto social.


[1] A 1ª Expedição Militar, sob o comando do Tenente Pires Ferreira, deslocou-se, em novembro de 1896, de trem de Salvador para Juazeiro e, daí, marchou com destino ao Arraial de Canudos. Entretanto, foi interceptada pelos Conselheiristas na localidade de Uauá, onde se deu renhido combate. A 2ª, sob o comando do Major Febrônio de Brito, deslocou-se de trem de Salvador para Queimadas e, após idas e vindas, marchou para Monte Santo, com destino a Canudos. Também sequer avistou as torres da Igreja Nova do Arraial, já que, após o célebre combate do Cambaio, foi atacada nos Tabuleirinhos, mais precisamente na Lagoa do Cipó, de onde bateu em retirada (jan/1897). A 3ª Expedição, comandada pelo famoso e folclórico Coronel Moreira César, o alcunhado “Corta-Cabeças”, fez o roteiro Salvador/Queimadas (trem) e marchou via Monte Santo, Cumbe (hoje Euclides da Cunha) até Canudos. Ao penetrar no arraial, teve o seu comandante ferido, o qual pereceu ainda na zona de luta. Após tal infortúnio, sofreu novos ataques dos Conselheiristas e bateu em vergonhosa retirada (mar/1897). A 4ª e última Expedição Militar, sob o comando do General Artur Oscar, foi dividida em duas grandes colunas: a 1ª, sob o comando do General Silva Barbosa, fez o roteiro Salvador/Queimadas/Monte Santo/Canudos, e a 2ª, comandada pelo General Claudio Savaget, partiu com os seus efetivos de Aracaju e São Cristóvão (SE), aglutinou-se em Jeremoabo (BA) e introduziu-se na região de Canudos pela Serra do Cocorobó, onde se deu violento e longo combate. As operações desta última Expedição duraram aproximadamente sete meses (abril/outubro de 1897).

[2] Diz a tradição popular que Conselheiro sempre contava ter tido um sonho, no qual Deus, através do Anjo Gabriel, havia lhe destinado a sagrada missão de edificar 25 igrejas, todavia em terras fora do Ceará.

[3] Sobre o assunto, há o interessante artigo da professora Consuelo Sampaio, intitulado “Canudos: o jogo das oligarquias”.

[4] Exs: Revolução Federalista (sul do país) e a Revolta da Armada, na Baía de Guanabara.

[5] Denominação dada pelo Conselheiro e seus seguidores à República. Os relatos atestam que nem o dinheiro republicano tinha facilidade para circular no arraial, sendo alcunhado de “imundíça” pelos sertanejos.

[6] Relatos dos que testemunharam a ação dos Conselheiristas, por exemplo, no combate da Vila de Uauá, atestam que os mesmos vieram para guerra assim como poderiam vir para uma fervorosa procissão, já que traziam uma grande cruz de madeira, carregavam estandartes religiosos, imagens de santos e entoavam cantos litúrgicos.

[7] Dramático e corajoso depoimento fez o jovem acadêmico de Medicina, Alvim Martins Horcades, que para Canudos havia se deslocado para o atendimento dos feridos, em sua obra “Descrição de uma viagem a Canudos” (1899). Nela o acadêmico atesta o assassinato de todos os prisioneiros, inclusive o de Antônio Beatinho, que havia negociado o acordo de paz com o comandante Artur Oscar, tendo sido um dos primeiros a receber a dita “gravata vermelha” nos arredores do Morro da Favela, acampamento principal das tropas militares em Canudos.


Roberto Dantas

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