quinta-feira, 2 de outubro de 2014

UM CONTO


O CAUSO ASSOMBROSO DA PEDRA DO CABOCLO

 

Natal de 1962. O misterioso e assustador ronco, escutado sempre às duas da madrugada, vindo lá da grande Pedra do Caboclo, lembrava o de uma cuíca mal tocada, entremeado, às vezes, por uivos fantasmagóricos e, se a roncaria não bastasse, ecoavam alguns gritinhos histéricos que aumentavam e diminuíam de intensidade como se harmonizados ao movimento dos ventos. Pela terceira vez aquela sinistra “orquestra” assombrava aos moradores do Povoado do Tanque, por sua vez cidadãos historicamente supersticiosos, em razão da lenda que sempre se contava na localidade, de geração para geração, alusiva aos primeiros habitantes que ali, no ermo daquelas paragens sertanejas, resolveram se estabelecer pelo final do século XVIII. Superstição e temores que pegaram religiosamente a carona do tempo.

 

Sempre que algum fato estranho ou verdadeiramente preocupante se dava no acanhado povoado - praga demasiado nociva, criança mal nascida, morte repentina de alguém saudável, ou, ainda, uma inacreditável graça alcançada -, imagine-se um som horripilante a ecoar da grande pedra (!), Maneca e Chico Duro, os mais antigos moradores do lugar, relembravam que dois casais de índios já catequizados ali chegaram foragidos e amedrontados, vindos da antiga Missão de Maçacará, no ano de 1775, provavelmente em face das perseguições engendradas aos jesuítas, sob as ordens do austero e inclemente Marquês de Pombal, momento em que muitas missões religiosas foram dizimadas no Brasil com a complacência da Coroa Portuguesa.

 

Eis o relato. Os quatros caboclos, cansados de tanto caminhar desde a antiga Missão, em busca de água e, logicamente, de abrigo seguro, encontraram ao pé da majestosa pedra, que hoje é o símbolo maior do povoado, o ansiado refúgio. Após descanso merecido, os dois homens passaram os primeiros dias caçando rolinhas, preás e tatus, regalaram-se, alegremente, nas aguadas ali existentes, pois que límpida a água, onde se banhavam e saciavam a sede, passando, com o tempo, a plantar, com o apoio das suas companheiras, milho e mandioca, fincando, por fim, no mesmo pé da pedra, a sua definitiva morada. Logo a mulher de um dos caboclos pariu dois rebentos, diferentemente da outra indígena, que por não engravidar não entendia e, muito menos, aceitava tal incapacidade. Daí, o casal faltoso de filhos resolveu peregrinar ao cume da pedra, oferecer o sacrifício da íngreme subida a Deus e a Este rogar pela graça de um descendente. Passados meses e o pedido não sendo atendido, e vendo já crescidos os gêmeos saudáveis do casal amigo, teria o inditoso casal se precipitado do mesmo cume da grande pedra, numa noite de tormentas, já que revoltados e inconformados com a sua infertilidade. Ato insano, pois, segundo o aprendizado adquirido com os jesuítas no aldeamento religioso, somente Deus, que provê a vida, pode tirá-la, constituindo-se o suicídio num grave desrespeito, além de sinalizar pouca fé diante da graça divina, o que, por conseguinte, ocasionaria infortúnios no porvir.

 

A partir do trágico acontecimento, o casal bem aquinhoado de filhos resolveu abandonar o antes pensado feliz refúgio, que passaria a ser concebido como local amaldiçoado. Todavia, um dos filhos, de nome Touro Valente, um índio bastante compenetrado de sua força e de pouca conversa, discordou da decisão dos pais e, a estes desacatando, negou-se a partir, permanecendo só ao pé da grande pedra. Após três anos de solidão absoluta naquelas paragens, um numeroso grupo de aventureiros, tangendo gado e carregando seus velhos baús repletos de roupas, moedas e bugigangas, apareceu na abandonada localidade e foi mal recepcionado pelo caboclo embrutecido. Aprisionado pelos novos visitantes, e após contar ao seu aquiescente sentinela toda a sua história, Touro Valente, no primeiro dia em que ganhou a liberdade, suicidou-se do cume da pedra. Foram, portanto, o vigilante confidente e aqueles recém-chegados tangedores de gado as testemunhas da dramática história e que, com riqueza de detalhes, repassaram aos pósteros.

 

Assim, em respeito ao triste acontecimento, os moradores da localidade, certamente tementes a Deus ou aos espíritos dos inditosos indígenas, passaram a fazer romarias ao cume da pedra, munidos de terços, tochas e velas, onde também edificaram um grande cruzeiro de madeira robusta, em cujo pedestal foi entalhado o nome de Touro Valente. Ali, na data do suicídio do caboclo, a mesma data consagrada ao nascimento do menino Jesus, eles oravam, entoavam cantos penitenciais e depositavam flores. Eis como nasceu a famosa Romaria do Caboclo, que, ainda hoje, a tantos romeiros e religiosos atrai, atravessando os séculos!

De volta ao natal de 1962. O pânico que se instalou no Povoado do Tanque, em especial entre as mocinhas dondocas, as supersticiosas beatas e as crianças, além, evidentemente, da ansiedade de logo descobrir o mote da misteriosa roncaria, seguida de uivos e gritos vindos da escuridão da serra, os homens mais jovens, em arroubos de valentia, demonstrando à comunidade uma coragem maior do que verdadeiramente possuíam, arriscavam palpites e prometiam a solução do problema.

 

Assim, no converseiro turbulento que tomou conta da venda de Mané Botica, Zé Folia, cabra matreiro e letrado, um sujeito sabido e “boa vida”, que vivia de dançar lundu e tocar pífaro em qualquer festejo nas redondezas, asseverou: “isso não se trata de alma penada! Deve ser onça parida zanzando perdida e com o bucho vazio. Vou me armar de tocha e espingarda e subir a serra para abater essa felina dos diabos. Quero saber se tem macho aqui para me acompanhar na empreitada?”. Aí, justamente o franzino e apalermado Joca Cabelinho, cabeleira sempre exageradamente escovada com brilhantina mal cheirosa, quase gaguejando, se ofereceu para parceiro, o que logicamente causou imediata gargalhada aos presentes. Chico Perna Longa, contumaz andarilho da região, lidador de gado, matuto supersticioso e sem qualquer estudo, do alto de seus quase dois metros de altura, assim se pronunciou: “é bão nóis tê prumo do causo, pois assunte cê mermo arma penada de demonhe! E sendo arma de má serventia de caboclo maldiçoado é mais pior que as arma de nóis. Vâmo é percurar logo loguinhe o ‘Seu’ padre!”. Juvêncio Caolho, empregado do matadouro, homem embrutecido e que perdera a visão esquerda em razão de um espinho de mandacaru quando ainda vaquejava caatinga adentro, tomou a palavra e desafiou toda a audiência: “Larga de bestage cabra! E vosmecês, que é tudo murfino, perde hora aí arrotando serventia e valência! Tudo só do gogó pra fora! Tô pagando pra vê quem arriba comigo inda hoje mesmo de noitinha! Quero vê quem aí se aoferece pro desafi pra sangrar, lá em riba mermo a tá da sombração?”.

 

Os arroubos de valentia, seguidos das mais bizarras proposições para solução do intrigante caso, só cessaram quando se deu a repentina chegada de Sinhozinho Ramiro ao recinto, o jovem e único filho do Coronel Setembrino Cordeiro de Almeida, ambos descendentes diretos daqueles primeiros desbravadores da região, os tangedores de gado que ali chegaram e encontraram o temido e infeliz caboclo Touro Valente. Fazia pouco tempo que o jovem havia se formado em Direito - como de costume se dizia, “na zoropa”-, tendo retornado para auxiliar ao pai nos negócios da fazenda, este já envelhecido e padecendo de fraqueza nos ossos, angariou bom conceito e prestígio da maioria dos moradores do povoado. Por sinal, aproximava-se a data de seu casamento com uma belíssima moça nascida na cidade de Serrinha, a qual ele conhecera, entretanto, nos bailes da capital, a romântica e ainda poética cidade de Salvador, onde também ela estudava. Chamava-se Ana Beatriz.

 

Os bisavós do Sinhozinho Ramiro – José Felix Cordeiro de Almeida e Anatália Quirino de Almeida - eram, na verdade, senhores de engenhos empobrecidos, em decorrência da descoberta dos diamantes e do ouro nas Minas Gerais da Colônia, fato alvissareiro que provocou, no último quartel do século XVIII e início do século seguinte, a cobiça e a consequente fuga desenfreada de muitos colonos remediados e dos agiotas lusitanos da zona açucareira nordestina para a região sudeste, assim como atraiu os interesses e direcionou os investimentos da Coroa. Na esteira dessa movimentação, deu-se, também, o deslocamento de muitos escravos para o consequente e exaustivo trabalho da cata dos minerais nos leitos dos rios e das escavações mal conduzidas nas rochas. Florescia, desse modo, o dito tráfico interprovincial dos negros cativos.

 

Tal descoberta, portanto, acelerou o processo de decadência dos negócios do açúcar no nordeste brasileiro, contribuindo, ainda, para este infortúnio, a forte concorrência do açúcar de beterraba no mercado mundial, cujo centro de decisões ficava no velho continente europeu. Assim, muitos senhores do chamado recôncavo baiano – região de maior concentração de engenhos e, por conseguinte, de escravos da antiga Província da Bahia – venderam por necessidade, perderam por dívidas ou mesmo abandonaram por total falta de condições materiais as antes produtivas propriedades, em busca de melhores pastos para as suas parcas criações e de novas formas de ganho, embrenhando-se sertão adentro. Os Cordeiros de Almeida vieram nas primeiras caravanas de forasteiros achegadas naquele sítio sertanejo. De desbravadores aventureiros passaram a fundadores de prestígio e poder do então Povoado do Tanque, propiciando o desenvolvimento da localidade.

Sinhozinho Ramiro, acompanhado de seu querido e fiel capataz, Joca Sabiá, este um repentista juramentado e de assobio reconhecidamente afinado, pediu silêncio e propôs, mediante algumas condições, o seu plano para enfim descobrir o que se passava de fato nas madrugadas misteriosas da grande Pedra do Caboclo. Respeitado o silêncio pedido, Sinhozinho Ramiro agradeceu a atenção e expôs a sua ideia:

 

SINHOZINHO: “bom, não sei e ninguém aqui sabe, ao certo, o que está acontecendo na Pedra do Caboclo. Ainda não temos, na verdade, a certeza de qual bicho perambula, provavelmente aflito, pela serra, ou até se a zoeira percebida por todos nós nessas recentes madrugadas se trata mesmo – o que logo afirmo não acreditar! – de alma penada, de assombração de índio ou de espíritos errantes, sei lá, aquilo que vocês mais supersticiosos ou crentes na existência de almas do outro mundo tendem a suspeitar e, mesmo, a crer fervorosamente. O que tão somente sei é que carecemos dar um basta nessa agonia toda e resolver o problema. Assim, gostaria de convidar alguns de vocês, mais particularmente aqueles que têm maior costume no uso de suas armas e, logicamente, tiverem boa vontade e coragem para subir a serra comigo e com o meu velho amigo aqui, o Joca Sabiá. Mas, desde já, imponho duas condições: sem beberagem e que todos os voluntários obedeçam ao meu comando, entendido?”.

 

Após um silêncio reflexivo, apenas dois sujeitos se prontificaram para a empreitada: Timóteo, o único vigilante noturno do povoado e o bruto açougueiro Juvêncio Caolho. O magricelo de cabelo seboso e face empalidecida, sem noção novamente ameaçou levantar o seu raquítico braço, mas foi abruptamente contido por Mané Botica. Os que perceberam o ato sorriram cuidadosamente. Daí, a convite do Sinhozinho, os dois corajosos voluntários acompanharam ao jovem noivo e seu capataz até a Fazenda Sagarana, bela e suntuosa morada do seu pai, o Coronel Setembrino - propriedade que, em breve, seria herdada por Sinhozinho -, no sentido de conhecerem o plano a ser envidado e de escolherem as armas mais qualificadas para o introito.

 

Durante cinco seguidas madrugadas os quatro sujeitos – Sinhozinho, Joca Sabiá, Juvêncio Caolho e Timóteo – permaneceram em vigília compenetrada na serra. Para decepção e desestímulo nenhum ronco, nenhuma gritaria, sequer rastros foram identificados pelos corajosos caçadores de mistérios! Logicamente que o assunto atinente não apenas à estranha e assombrosa roncaria, mas, sobretudo, ao insucesso da caçada realizada na Pedra do Caboclo, dominava as fofocas nas latadas da feira, nas quitandas do povoado e, mesmo, nas conversas de família, já que a todos os residentes daquela humilde e erma localidade o misterioso barulho seriamente atormentara. Por mais três noites o resoluto quarteto sucumbiu à frieza, aos gulosos pernilongos e ao silêncio assustador da serra. Para descrédito de uns e medo de outros, nada infelizmente foi identificado.

 

Um mês se passou. Quando todos já haviam serenado os ânimos antes exaltados, eis que justamente numa noite de sexta-feira e de lua cheia, para exacerbação do drama das beatas e das previsões nefastas dos supersticiosos, nova roncaria ecoou da serra, acompanhada de tudo que tinha direito para imediatamente assombrar, até mesmo aos ditos valentões: gritos histéricos, risadas fantasmagóricas e, desta feita, até luzes que lembravam os famosos fogos fátuos de muitas estórias estrambóticas que tanto assombros e dúvidas causaram aos homens e mulheres pecadores!

 

Esbaforido, o povo ocupou as ruelas e becos do Povoado do Tanque. Eram mulheres descabeladas ou de toucas nas cabeças, algumas vestidas em suas anáguas rotas e desbotadas, homens encabulados apenas de ceroulas a tapar seus “documentos” e espingardas às mãos, criançada de pés descalços a gritar desbragadamente, enfim um verdadeiro rebuliço se deu no tosco vilarejo. Não demorou nem meia hora e apareceram, armados e decididos, Sinhozinho Ramiro e seu fiel escudeiro, Joca Sabiá, aos quais logo se juntaram Timóteo e Juvêncio Caolho. Imediatamente, os quatro últimos, os mesmos membros resolutos do vigilante quarteto, em nova e mais compenetrada investida, subiram a serra em busca do “bicho assombrado”, da “alma penada”, seja lá o que fosse, na ânsia de finalmente descobrir e, em sendo possível, prender ou mesmo, caso fosse inevitável, matar a “fera misteriosa”.

 

Acolhendo aos conselhos do sacristão Pedro, sempre ponderado nas opiniões e delicado nas posturas, atributos que alguns moradores do povoado, à boca miúda, diziam mais afeitos ao de um sujeito afeminado e frouxo, todos se recolheram em orações nas suas humildes casas e, de ouvidos atentos, aguardaram o desenrolar dos acontecimentos. Inclusive, as beatas lamentaram o fato de o Padre Aparecido da Cruz ter viajado - portanto, desaparecido do povoado! - justamente na noite anterior, alegando a necessidade de proceder a um batismo lá para as bandas da Baixa Grande, localidade relativamente distante do Povoado do Tanque, privando a todos, naquele aflitivo momento, das suas orientações para conduzir as fervorosas orações.

 

Longas horas foram vencidas e tão somente com os primeiros raios de sol, exaustos e esfarrapados em consequência dos passos apressados empreendidos em meio a rude vegetação catingueira, os quatro defensores do povoado desceram da Pedra do Caboclo sem qualquer vestígio que ao menos suscitasse alguma suspeição. O mistério permaneceria insondável, concorrendo para o espanto e medo de todos os moradores. O que de fato se dava na serra? Que ronco e gritarias eram aqueles? Mais do que isso: e que luzes intermitentes eram aquelas? O povo teria de esperar por mais dois meses para desvendar o assombroso mistério. E o ditado popular, uma vez mais, seria desbancado em seu aconselhamento: “quem não tem cão caça com gato”. Ao menos ali, no Povoado do Tanque, tal expressão não confirmaria sua serventia!

 

Exatamente na noite do casamento de Sinhozinho Ramiro com a bem dotada e dengosa Ana Beatriz, o mistério da Pedra do Caboclo seria finalmente desvendado. A festa foi previamente noticiada nas fazendas e vilas das redondezas. Veio gente de várias localidades, convidados ilustres, alguns, inclusive, deixaram inesquecíveis lembranças em razão de suas irreverentes aparências, seja nos trajes, seja nas posturas. Exemplo fiel das mais hilárias recordações foi o “papelão” protagonizado pelo Coronel Gervásio Albuquerque, descendente de família tradicional do sertão pernambucano, mas que fez vida na Bahia. Este já sexagenário senhor, além de contador de causos mirabolantes, o que popularmente se rotula de “culhudeiro sem vergonha”, apareceu enfeitado de ouro e prata nos dedos das mãos e no pescoço, babando um charuto mal cheiroso e portando chapéu de cor lilás à cabeça que, ao rebate do sol, fazia os olhares alheios lacrimejarem. Este encorpado fazendeiro bebeu tanto que escorregou na própria urina, caindo com a cara no líquido etílico e morno que havia, com dificuldade, vertido, quando tentou, sem sucesso, se equilibrar atrás da cancela principal da fazenda do Coronel Setembrino. Todo mijado, das botas ao chapéu reluzente, ali mesmo desmaiou, sendo, mediante protestos, socorrido por dois vaqueiros do Sinhozinho e por eles levado para continuar seu sono regado de ureia, entremeado de roncos enervantes, na varanda dos fundos da casa grande.

 

Outro exemplo inesquecível para os convidados da grande festa foi o de Dona Carmelita Antão Barbosa, a estrepitosa e inconveniente esposa do escrivão de Feira de Santana, Senhor Raulino Guedes Barbosa. Esta senhora, quando apenas segredava ao pé de qualquer azarado ouvido, na oportunidade o da azarada Joana, sobrinha do Coronel Setembrino, que teve o desprazer de sentar-se à mesa vizinha, atormentava, também, aos ouvidos mais próximos, razão não somente da altura de sua voz  estridente e que nunca se calava, fazendo crer as suas vítimas auditivas que algum mecanismo de corda havia sido acionado naquela criatura bizarra, mas, da mesma forma, como se a ilustrar o seu desempenho de inveterada narradora, ouvia-se e, principalmente, sentia-se os efeitos de suas despudoradas bufas. Aos poucos foi rareando a presença de convivas ao redor daquela barulhenta e fedorenta mesa! Os que chegavam atrasados no furdunço matrimonial logo tinham frustrada a inicial alegria de encontrar cadeiras disponíveis, percebendo, em seguida, os motivos da inusitada vacância das mesas vizinhas à do escrivão, que igualmente não suportou a constrangedora companhia de sua mulher e foi se juntar aos homens que discutiam sobre gado, bordéis e, é lógico, sobre o ronco da serra. É que a orelha e o nariz do inditoso escrivão já não mais aguentavam aqueles estrídulos e odores!

 

Logo após a execução da valsa da meia noite, em que Ana Beatriz a todos os marmanjos seduziu, ouviu-se a assustadora roncaria, causando a imediata correria para o terreiro da fazenda. E o interessante é que a Fazenda Sagarana distava quase uma légua da Pedra do Caboclo! O estranhamento que afinal concorreu para a descoberta da origem daquele barulho misterioso foi justamente esta distância, todos atinando que o temeroso ronco ecoava de algum recôndito bem próximo dali, portanto advindo de algum esconderijo atrelado à propriedade em festa e não mais advindo da majestosa serra!

 

Os homens mais jovens empreenderam desatinada carreira no sentido da roncaria e dos gritinhos histéricos que sempre secundavam àquele som semelhante ao do produzido pelo instrumento percussivo e, para estupefação geral de todos, escondidos atrás de um pequeno lajedo, seriam flagrados o Padre Aparecido da Cruz, de cuíca na mão e apito na boca, e o tal do “sacrista afeminado”, a soltar sua voz de travesti afetado, ambos a cometer aquela traquinagem! Igualmente ao susto dos perseguidores, a gargalhada do sacerdote foi descomunal. Apenas o sacristão Pedro, frouxo como de costume, saiu em desabalada correria, certamente temendo ser agredido pelos homens ali estupefatos e enraivecidos.

 

Descoberto o mistério, o Padre Aparecido foi duramente repreendido pela sua indevida brincadeira, tendo maculado, na rígida interpretação do Bispo, a imagem da Igreja e de seus devotados religiosos. A sentença foi a sua transferência para a Freguesia de Cocorobó. Entenda-se, agora, o motivo daquela traquinagem e a desvalia daquele ditado. A razão da brincadeira, alegada pelo Padre Aparecido da Cruz quando de suas explicações ao Arcebispado, foi por “querer fortalecer a pouca fé católica dos moradores do povoado”, os quais, ainda segundo o sacerdote, “acreditavam tão somente em superstições e careciam, portanto, de professar uma crença balizada nos dogmas da Igreja”. Confessou que em breve acabaria com a roncaria, na medida em que iria propor ao povo ladainhas e orações, alguns jejuns e ações de caridade em prol dos mais humildes da localidade, cuja benéfica consequência, resultante, portanto, das orações, dos bons comportamentos e das dignas ações sociais, seria o desaparecimento definitivo da roncaria da serra.



E quanto à desvalia daquele ditado, o padre brincalhão e o devotado sacristão - que por sinal escafedeu-se sem deixar rastro – intentaram, naquela noite do casamento, e como visto sem sucesso, substituir aos dois sujeitos da Baixa Grande que sempre atormentavam o povo supersticioso do povoado, serviço de assombração contratado e assumido religiosamente pelo padre traquina. Portanto, mais previdente mesmo é caçar com cães amestrados do que com gatos despreparados!


Roberto Dantas.

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