(Registro - R. Dantas)
A
guerra fratricida de Canudos (Nov/1896 – Out/1897), para além do assustador número
de mortos, feridos, inválidos - máculas impagáveis para o cotidiano logo depois
vivenciado pelas comunidades sertanejas que viviam no entorno do insurrecto
Arraial do Belo Monte (Canudos) -, deixou, como inaceitável e triste legado, a
incompetente e violenta participação do Exército Republicano Brasileiro, consignada,
dentre outros desmandos, na desorganização das operações militares, na ambição
e vaidade desmedidas de muitos de seus comandantes no campo da luta e, ainda,
no vil preconceito protagonizado pela grande maioria de seus efetivos. É que
comandantes e comandados destilaram, sem zelos, as suas raivosas
discriminações, tanto em relação à região em que desastradamente atuaram e, com
semelhante intensidade, quanto ao tratamento dispensado aos combatentes conselheiristas,
como de resto aos demais sertanejos com os quais se debateram.
No
que pese toda a arrogância e o exagerado otimismo com que as tropas partiram da
Capital Federal (Rio de Janeiro) e de outras capitais da recém-fundada
“República da Espada” (no sertão operaram efetivos militares de dezessete
estados brasileiros!), foram necessárias quatro expedições e quase onze meses
para a conquista definitiva da cidadela sagrada de Canudos, expedições que,
apesar de melhor municiadas e contando com maior número de contendores em
relação aos guerreiros sertanejos, acumularam desesperadoras e vergonhosas
derrotas, que causaram espanto e desmesurado ódio no seio das elites políticas,
religiosas, econômicas e, especialmente, militares. Aliás, vale ressaltar que –
como muito se disse quando da grave contenda – no sertão da Bahia esteve
presente a chamada “fina flor” do Exército Republicano Brasileiro: seus muitos
coronéis, alguns generais e até o então Ministro da Guerra, o Marechal Carlos
Machado Bittencourt.
Muitos
foram os fatos e circunstâncias que comprovaram esta negativa investida armada
contra o solidário e populoso arraial (aproximadamente trinta mil pessoas!),
plantado às margens do histórico rio Vaza Barris, que provia a comunidade de
Antônio Conselheiro, este andarilho incansável, o fervoroso peregrino que,
tendo padecido sofrimentos no sertão do Ceará - onde nasceu em 1830 e batizado
Antônio Vicente Mendes Maciel - percorreu os ínvios caminhos nordestinos,
quando distribuiu conselhos, ajuntou o povo pobre para rezar, pregou a doutrina
católica, cavou poços e cacimbas, alevantou muros de cemitérios e construiu
igrejas. Passado o tempo das andanças, fincou o seu gasto cajado no sertão da
Bahia, em terras da antiga e abandonada Fazenda Canudos, aí fundando, em junho
de 1893, o seu “Império do Belo Monte”, já acompanhado de fiel e numeroso séquito.
As
duas primeiras expedições sequer vislumbraram as torres da Igreja Nova do Belo
Monte. A primeira, comandada pelo Tenente
Manoel Pires Ferreira e com um efetivo de 104 praças, tendo partido da
cidade de Juazeiro, após empreender longa e sofrida viagem pela catinga
intransitável, quando acantonada na Vila de Uauá, portanto ainda distante do
seu alvo principal, enfrentou, em novembro de 1896, renhida batalha com os
combatentes conselheiristas, os quais ali chegaram entoando cânticos religiosos,
portando cruzes, imagens, algumas armas de caça, machados e cacetes, sob o comando
austero de João Abade, o então Chefe da Guarda Católica Conselheirista, filho
da cidade de Tucano. Segundo o relato do próprio comandante expedicionário,
Tenente Pires Ferreira, os conselheiristas “vieram
para guerra como poderiam ter vindo para alguma procissão ou ato religioso”.
Apesar das consideráveis perdas verificadas no lado conselheirista, talvez em
razão da perda de seus dois guias e do surto repentino que teria acometido ao
único médico da expedição momentaneamente desbaratada, somando-se a isso
certamente a rudeza do solo e o clima abrasante, o citado comandante reuniu sua
tropa assustada e ordenou a retirada, retornando, constrangido, ao seu local de
origem.
(Registro - R. Dantas)
A
segunda expedição, organizada imediatamente após o fracasso da primeira,
partindo de Queimadas e acantonando brevemente em Monte Santo (ambas as vilas
se tornaram, naqueles dias conturbados, as bases primaciais das forças
militares em operação no sertão baiano), recebeu o comando não mais de um
oficial Tenente, mas de um Major, o militar Febrônio de Brito. Com um efetivo triplicado, padeceu dois
virulentos ataques dos conselheiristas: o primeiro, na Serra do Cambaio; e o
segundo, na antiga Lagoa do Cipó, que depois do sangrento embate, passaria a
ser chamada de Lagoa do Sangue. Tal foi a carnificina vivenciada nas referidas
batalhas e, sobretudo, a excelência da tática dos sertanejos em luta, ensejada
nos movimentos intermitentes de “fustigamento à tropa”, que o resultado
configurou igualmente desastroso para a expedição. Destes dias de janeiro de
1897 jamais o Major Febrônio de Brito esqueceria enquanto vivo permaneceu, já
que, razão de sua inaceitável retirada da contenda, e tal como o Tenente Pires
Ferreira sem sequer cumprir com o seu objetivo de atacar Canudos, aquele
graduado oficial foi duramente criticado, recebendo a alcunha nada honrosa de “Major Fujão”. Para ilustrar o fato, o
próprio Major Febrônio, em seu relato de combate, atestara ter dizimado 600
conselheiristas e apenas perdido dez de seus briosos soldados! Números
certamente incompreensíveis para o crédito de seus indignados superiores! Então,
quais razões embasaram a decisão de retirada?
Somente
a “invencível”, numerosa e tão ovacionada terceira expedição militar alcançaria,
pela primeira vez, as cercanias do arraial resistente e até dominaria, durante
algumas horas, mas sob cerrado fogo e de forma açodada, alguns de seus
periféricos barracos. Tal fora a revolta na Caserna e a indignação de quase
toda a sociedade, insuflada pelos jornais e provocada pelos políticos mais
radicais em face da derrota de Febrônio, que coube ao renomado e fanático
militar florianista, o Coronel Antônio
Moreira Cesar, alcunhado “Corta-Pescoço”, o comando dos quase 1.200
efetivos da tropa. Os sertanejos testemunhariam a empáfia e o destempero deste
oficial da Arma da Infantaria, engenheiro militar, que vociferava em todos os
passos de sua longa caminhada de Salvador até os inóspitos rincões sertanejos
de que “traria a cabeça do Conselheiro
para exposição nas ruas da Capital Federal” e que “tão somente receava que o beato transgressor, ao saber de sua presença
no sertão para combatê-lo, evadisse amedrontado antes mesmo de sua chegada em
Canudos”.
Triste,
entretanto, seria o destino deste compulsivo militar. Atingido gravemente nos
arredores da cidadela conselheirista, logo no início de sua inadequada e
apressada investida, expiraria numa pobre cabana sertaneja, na fria madrugada
do mês de março de 1897. Contribuíram, provavelmente, para a capitulação
precoce da expedição o cansaço da tropa – havia empreendido exaustiva marcha e,
por isso, carecia de descanso e rancho - e a incompetência de não ter sido
feito, como se deveria, o anterior reconhecimento do terreno em que operaria. A
rota fora a maior cumprida das expedições já enviadas: Queimadas, Monte Santo,
Cumbe (hoje, cidade de Euclides da Cunha), Rosário, Umburanas e Canudos. A
dupla notícia da derrota da celebrada expedição, mas, sobretudo, da morte de
seu laureado comandante na inditosa refrega, causou verdadeira comoção
nacional. Vários tumultos, quebra-quebras, empastelamento de jornais
reconhecidos monarquistas e até o assassinato de um renomado jornalista nas
ruas do Rio de Janeiro, Gentil de Castro, agitaram violentamente o país.
Dizia-se à viva voz: “República em
perigo!”.
(Registro - R. Dantas)
Imediatamente
formou-se a quarta expedição militar a ser enviada para Canudos. Com os seus
preparativos iniciados desde o mês de abril, somente em junho de 1897 a expedição chegaria,
com alguns percalços, nos arredores de Canudos, mais precisamente no Alto da
Favela ou Morro do Barro Vermelho. Configurou-se no maior ajuntamento de
efetivos para uma guerra – bom lembrar, endógena! – na história militar da
nação brasileira. Esta grandiosa expedição foi, para sorte de seus componentes
e para o futuro do governo brasileiro, dividida em duas grandes colunas,
compostas cada qual com três batalhões, a saber: à primeira coluna, que marchou
de Queimadas e Monte Santo até Canudos, coube o comando do General Silva Barbosa;
a segunda, que partiu de Aracaju e São Cristóvão, no vizinho estado de Sergipe,
tendo chegado, via Jeremoabo, a Canudos, teve como comandante o General Claudio
do Amaral Savaget. O comandante-em-chefe de todo o efetivo foi o General Artur Oscar Guimarães, oficial
de extensa ficha no Exército.
Além
de padecer os frequentes fustigamentos dos guerreiros de Conselheiro, da mesma
forma a carência de água e as atribulações do clima abrasante em solo
desconhecido e rudemente esturricado, a expedição, atraída inteligentemente
pelos sertanejos para o referido morro, neste sofreria as piores agruras de seu
tortuoso itinerário, já que tendo a sua “cauda” apartada dos corpos principais
da tropa, portanto burramente desprotegida, sofreria o assalto ao seu comboio (munições
de guerra e de boca) no Vale das Umburanas, localidade próxima ao Alto da
Favela. Não fosse a outra rota escolhida pela segunda coluna (Sergipe/Bahia),
certamente incerto teria sido o destino do imenso efetivo militar, vendo-se,
como afinal de deu, sufocado, sem armas, água e alimentos, pelos
conselheiristas. A segunda coluna, que também enfrentou duras escaramuças na
Serra do Cocorobó e nas localidades de Macambira e Trabubu, sítios próximos ao
arraial de Canudos, salvaria dramaticamente a primeira.
No
entanto, conforme foi dito acima, apenas num sombrio entardecer de outubro
dar-se-ia o trágico final dessa guerra fratricida, sendo, portanto, necessários
quase quatro meses de ataques mal conduzidos e de vergonhosos recuos, de muitas
perdas e sofrimentos inomináveis, para a conquista definitiva do arraial
sertanejo. Metralhadoras, balas de canhões e até de querosene, granadas, fuzis,
facas e facões, enfim, a todo armamento disponível se recorreu,
desesperadamente, para o alcance do objetivo político-militar de se destruir a
“Tróia de Barro”. Porém, o pior dos crimes ainda seria cometido pelos efetivos
militares, absurdamente quando rendidos e já feitos prisioneiros os
conselheiristas: a covarde “gravata vermelha”, ou seja, o vil degolamento!
Feito o acordo da rendição entre as partes beligerantes, um código de guerra
foi gravemente desrespeitado, quebrado criminosamente pelos comandantes das
forças militares. Premido pelo seu sentimento de revolta, o jovem acadêmico de
medicina, Alvim Martins Horcades, que ao teatro da guerra voluntariamente se
apresentara com o valoroso objetivo de atender aos inúmeros feridos, deixou, em
seu livro “Descrição de uma viagem a
Canudos”, poucos anos após o grande conflito, o seu corajoso depoimento: “Em Canudos foram degolados quase todos os
prisioneiros”!
(Registro - R. Dantas)
Homens
estropiados, velhos incapazes e doentes, mulheres esquálidas e até inocentes
crianças foram covardemente degolados. Algumas poucas mulheres foram
preservadas, mas sendo algumas seviciadas e outras obrigatoriamente tornadas
prostitutas, levadas para a cidade de Alagoinhas. Os relatos produzidos pelos
membros do Comitê Patriótico da Bahia, cujo líder maior foi Lélis Piedade, são
dramáticos quanto ao estado deplorável dessas sertanejas na referenciada
municipalidade. Crianças – pejorativamente alcunhadas pelos militares de
“jaguncinhos” – foram arrancadas dos seios de suas desesperadas mães, cujos
pais pereceram lutando, e levadas por alguns militares como se fossem “brindes”
pela vitória finalmente alcançada! Eis a dita “civilidade” dos sulistas
republicanos!
Canudos
pereceu no entardecer do dia 05 de outubro de 1897. Sem dúvida, representou e
ainda muito representa enquanto maior movimento popular da história social
brasileira.
Roberto Dantas