Pelos atalhos, ainda quase desertos, que os lajedos
sinuosamente desenham e que os filetes d’água intermitentes singularmente
embelezam a rude catinga do sertão de Uauá, concebi - mais do que isso senti! -
a fé inegociável e a sanha indomável dos guerreiros conselheiristas quando dos
dias tormentosos da fratricida guerra sertaneja. Transcorridos quase cento e
vinte anos das sangrentas batalhas, aqui, conduzido por esse silêncio sepulcral
e como que transportado para aqueles tempos idos, imagino João Abade a combater
Pires Ferreira e, assim, com muito respeito, também silencio no recôndito mais
profundo do coração o lamento das lágrimas que ainda teimam escorrer na minha
face de sonhador. Reminiscências que não se apagam.
Aqui, onde no passado florescia uma pacata vila de pobres
viventes, abençoada, depois, pelas graças de São João Batista, seu amado
padroeiro, uma tropa militar de mais de cem soldados padeceria cruel embate
numa luta que a história registrou como sendo o “Primeiro Fogo da Guerra de
Canudos”. Aqui, naquele novembro de 1896, quem não fugiu para negar apoio aos invasores,
amoitou-se, sob preces, em seu casebre, ou clandestinamente colaborou com os
irmãos adeptos do grande e fervoroso guia dos mal-aventurados, o peregrino
Antônio Conselheiro. Eram dias difíceis, de seguidas e graves conturbações
políticas, mas, sobretudo, dias de carestia e de desumanas exclusões, quando a
maioria dos sertanejos – sempre esquecidos pelas autoridades constituídas ou
explorados pelos seus patrões autoritários - buscava e encontrava algum refrigério
na palavra e, especialmente, nos atos do citado andarilho. Dias do Belo Monte
Conselheirista. Dias da nova e contraditória era republicana no Brasil. Dias de
Conselheiro.
Aqui também passa o Vaza Barris, rio que então banhava o
solo comunitário belomontense em que pululavam quase trinta mil almas. Solo sagrado
em que muito se pediu graças ao Bom Jesus; eito em que foram edificadas
milhares de moradias, onde respectivamente se plantou e se colheu sementes e
frutos; terra onde foram criados muitos filhos e se estabeleceram devotados
sertanejos; comunidade que, apenas vencidos três anos de sua laboriosa
existência, com impensável denodo e assustadora disposição, envidou suas
defesas, mas que, finalmente, pereceria, após longos onze meses, ante as bombas
e as dinamites, ao querosene e ao insano canhoneio. Mas do que isso: ante a
covarde “gravata vermelha”! História ao mesmo tempo belíssima e dramática de um
povo crente e trabalhador. Seu grande e inesquecível legado: fé e
resistência!
E essas duas valorosas expressões me fazem, aqui à beira
desse filete d’água do mesmíssimo e histórico rio, às portas de Uauá,
serenamente refletir. Fé que ainda hoje – e novamente me
entrego àquele silêncio revelador – é percebida em seus atuais residentes,
consignada em tantos momentos de seu cotidiano adverso, todavia, mais especialmente
vivenciada quando dos ritos e louvores carinhosamente dedicados ao santo padroeiro
nos dias de junho. O amado São João Batista que abençoa e ilumina o povo
uauaense e a esta “Terra dos Pirilampos”. Fé que se renova e cotidianamente se
atrela à resistência, hoje não mais ensejada numa guerra para expulsão
de indesejados visitantes! Mas uma resistência que se desnuda, tão corajosa
quão sedutora, nas expressões de sua cultura sertaneja, de cunho eminentemente popular.
Pois que Uauá é, no sertão da Bahia, o gracioso e acolhedor recanto da musicalidade
e da poesia, fundadas na sensibilidade e virtuosidade de seus compositores, cantadores
e instrumentistas. Afinal, manifestações culturais imprescindíveis enquanto saudável
esculento para a alma.
São sanfoneiros, zabumbeiros, tocadores de pífaros e de pé
de bode, cantadores, cordelistas, aboiadores e poetas populares, enfim uma plêiade
de artistas de rara qualidade a esvurmar, sem descanso e com singular alegria,
os seus nobres talentos. Pois que Uauá, além de ter sido a trincheira primeira
e vitoriosa do povo do Conselheiro, e de ser a encantadora capital do bode e do
saboroso umbu, sempre foi e será festa! Uauá
é São João, é alvorada junina, é vida, é vaqueiro, é história. É sertão!
Salve Uauá!
Roberto Dantas
Novembro/2014
Nenhum comentário:
Postar um comentário