quarta-feira, 5 de novembro de 2014

FÉ E RESISTÊNCIA SOB UM SILÊNCIO REVELADOR



















Pelos atalhos, ainda quase desertos, que os lajedos sinuosamente desenham e que os filetes d’água intermitentes singularmente embelezam a rude catinga do sertão de Uauá, concebi - mais do que isso senti! - a fé inegociável e a sanha indomável dos guerreiros conselheiristas quando dos dias tormentosos da fratricida guerra sertaneja. Transcorridos quase cento e vinte anos das sangrentas batalhas, aqui, conduzido por esse silêncio sepulcral e como que transportado para aqueles tempos idos, imagino João Abade a combater Pires Ferreira e, assim, com muito respeito, também silencio no recôndito mais profundo do coração o lamento das lágrimas que ainda teimam escorrer na minha face de sonhador. Reminiscências que não se apagam.


Aqui, onde no passado florescia uma pacata vila de pobres viventes, abençoada, depois, pelas graças de São João Batista, seu amado padroeiro, uma tropa militar de mais de cem soldados padeceria cruel embate numa luta que a história registrou como sendo o “Primeiro Fogo da Guerra de Canudos”. Aqui, naquele novembro de 1896, quem não fugiu para negar apoio aos invasores, amoitou-se, sob preces, em seu casebre, ou clandestinamente colaborou com os irmãos adeptos do grande e fervoroso guia dos mal-aventurados, o peregrino Antônio Conselheiro. Eram dias difíceis, de seguidas e graves conturbações políticas, mas, sobretudo, dias de carestia e de desumanas exclusões, quando a maioria dos sertanejos – sempre esquecidos pelas autoridades constituídas ou explorados pelos seus patrões autoritários - buscava e encontrava algum refrigério na palavra e, especialmente, nos atos do citado andarilho. Dias do Belo Monte Conselheirista. Dias da nova e contraditória era republicana no Brasil. Dias de Conselheiro.





Aqui também passa o Vaza Barris, rio que então banhava o solo comunitário belomontense em que pululavam quase trinta mil almas. Solo sagrado em que muito se pediu graças ao Bom Jesus; eito em que foram edificadas milhares de moradias, onde respectivamente se plantou e se colheu sementes e frutos; terra onde foram criados muitos filhos e se estabeleceram devotados sertanejos; comunidade que, apenas vencidos três anos de sua laboriosa existência, com impensável denodo e assustadora disposição, envidou suas defesas, mas que, finalmente, pereceria, após longos onze meses, ante as bombas e as dinamites, ao querosene e ao insano canhoneio. Mas do que isso: ante a covarde “gravata vermelha”! História ao mesmo tempo belíssima e dramática de um povo crente e trabalhador. Seu grande e inesquecível legado: fé e resistência!

E essas duas valorosas expressões me fazem, aqui à beira desse filete d’água do mesmíssimo e histórico rio, às portas de Uauá, serenamente refletir. Fé que ainda hoje – e novamente me entrego àquele silêncio revelador – é percebida em seus atuais residentes, consignada em tantos momentos de seu cotidiano adverso, todavia, mais especialmente vivenciada quando dos ritos e louvores carinhosamente dedicados ao santo padroeiro nos dias de junho. O amado São João Batista que abençoa e ilumina o povo uauaense e a esta “Terra dos Pirilampos”. Fé que se renova e cotidianamente se atrela à resistência, hoje não mais ensejada numa guerra para expulsão de indesejados visitantes! Mas uma resistência que se desnuda, tão corajosa quão sedutora, nas expressões de sua cultura sertaneja, de cunho eminentemente popular. Pois que Uauá é, no sertão da Bahia, o gracioso e acolhedor recanto da musicalidade e da poesia, fundadas na sensibilidade e virtuosidade de seus compositores, cantadores e instrumentistas. Afinal, manifestações culturais imprescindíveis enquanto saudável esculento para a alma.





São sanfoneiros, zabumbeiros, tocadores de pífaros e de pé de bode, cantadores, cordelistas, aboiadores e poetas populares, enfim uma plêiade de artistas de rara qualidade a esvurmar, sem descanso e com singular alegria, os seus nobres talentos. Pois que Uauá, além de ter sido a trincheira primeira e vitoriosa do povo do Conselheiro, e de ser a encantadora capital do bode e do saboroso umbu, sempre foi e será festa!  Uauá é São João, é alvorada junina, é vida, é vaqueiro, é história. É sertão!


Salve Uauá!

Roberto Dantas
Novembro/2014



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