quinta-feira, 29 de setembro de 2016

MEU CHÃO




















Ah! Barro quente, avermelhado,
terra crua, chão incrustado,
eito de renhidas e cruéis lutas.
Gente resistente nas labutas
cotidianas duma lida sem par.
Rotas onde traço meu caminhar.

Também chão de riqueza singular,
verde que aos olhos faz brilhar,
na ventura da precipitada chuva.
Tal como à mão cobre a luva,
veste-se, logo, a rude caatinga.
Brota a flor e o fruto vinga.

O amanhecer qual terna matrona,
aurora luminosa e brincalhona,
abre-se em preces, cantos e ritos.
Beatas e vaqueiros tão contritos:
atos de boa fé; laços do ofício.
E tudo num fazimento propício.

Dos favos o doce mel respinga,
âmbar d’um entardecer que finda
ensejando nos âmagos a poesia.
Na feira o repente, a cantoria,
a viola, a zabumba, a sanfona
e a astúcia do matuto sob a lona.

Fecha-se a noite de carona
com os uivos da raposa fujona
que amedronta e cria estórias.
Ah!  Chão de caras memórias,
não há filho que lhe renegue.
Brisa que passa. Rio que segue...

R.Dantas



SONHO















Ali sentado à beira do belo açude,
negociei com o sono enquanto pude
ouvindo os sibilos ditados pelo vento.
Nessas plagas em que deita a harmonia
um lindo sonho fez-me a serventia
de esquecer das armadilhas do tempo.

Sonhei o sonho das loucas viagens,
enveredando-me pelas ternas paragens,
transportado pela musa dos meus escritos.
Nele me aparecia vestida de branco,
desenhando o tímido sorriso franco
em seus lábios rubros tão bonitos.

Mirei, sedento, a silhueta feminina,
lépida, quase voando, uma menina
revestida por uma auréola estelar.
Era a deusa dos meus pobres cantos,
a fada rainha que traria os encantos
para o meu coração descompassar.

Colhido fui para o mundo desconhecido,
aos seus cabelos anelado e embevecido
que nem a minha respiração eu conduzia.
Nos meandros das transparentes brumas
pude dos céus apreciar as espumas
do grande lago que a nós dois seduzia.

Mergulhamos, atados, nas águas profundas,
num recôndito de vivências fecundas,
num espectro de silêncio e ternura.
Recarregados por uma energia singular,
retornamos, a sós, para o sagrado altar
desse sertão que a todos nós cura.

A poesia nua revela a inquietude,
o canto afinado desvela a atitude,
o sonho de amor enseja a fantasia.
Eis a musa, a deusa, a fada rainha,
esculento dos versos em que se aninha
a minha sede de paz e de harmonia.

ROBERTO DANTAS




TRILHANDO...














Guardei do sorriso o brilho
e com ele percorri o trilho
da férrea e bucólica estrada.
Sem mais pensar em nada,
cantei, baixinho, o estribilho
da nossa canção eternizada.

Da boa semente é que se colhe
e com afetos a gente escolhe
a rota serena e dadivosa.
Ensejando a trilha ditosa,
caminhei como quem acolhe
a antiga estrada tortuosa.

Meu coração a cada passo,
e afinado ao leve compasso,
criou acordes para a canção.
Um aroma, um visgo, um botão
de uma flor cujo o laço
desatou nessa bela estação.


Tantas chegadas e partidas,
renovadas paixões paridas
no ir e vir do velho trem.
Trazer no âmago um alguém
e as lembranças encarecidas
pelos ardis do vai e vem.

E daquele sorriso guardado,
disponibilizo o meu renovado,
tal como um prazeroso escudo.
Às vezes falante, em outras mudo,
sigo o roteiro que não foi traçado;
a nada espero e espero tudo.


sábado, 24 de setembro de 2016

VERTIGEM



Súbita vertigem, nós do querer,
laivos prementes da ansiedade.
Subvertida a lógica da idade,
conspurcados os atos de prazer.

Verbos nem sempre conjugados,
receios dos desejos intestinos.
Camuflados dizeres caninos,
visíveis liames subjugados.

Tons de acordes dissonantes,
cordas partidas sob pressão.
Quase sempre o temor do não,
fugas e sombras delirantes.

Não há mais vozes, há gritos,
rancores de uma fala insana.
Verborréia que rude profana
aos sentidos, gestos e ritos.

Assim fenece uma poesia,
assim se cala uma canção.
Assim se borra uma grafia,
assim perece um coração.

R.Dantas




R I T O S



Vestígios da sua agitada presença,
para muito além da minha querença,
jamais se esvaíram; nunca esquecidos.
A esperança, o desejo e a crença,
sem qualquer ato de recompensa,
respondem pelos gestos consentidos.

Vícios da minha pouca paciência,
para muito além da sua conveniência,
jamais se amainaram; nunca retraídos.
A coragem, o denodo e a fluência,
sem qualquer vil maledicência,
subvertem os ditames ressentidos .

Vozes da sua duvidosa compostura,
para muito além da minha lisura,
jamais se calaram; nunca coagidas.
A harmonia, o compasso e a candura,
sem qualquer nobre partitura,
enlevam as notas esmaecidas.

Verrumas da minha rude postura,
para muito além da sua censura,
jamais se partiram, nunca pervertidas.
A insânia, o deboche e a conjura,
sem qualquer grave releitura,
desprezam as falas proferidas.

R. Dantas