O BACHAREL
Invariavelmente, dava-se a visita ao cair da tarde, quando,
bem mais amenos, os raios do sol deitavam no horizonte. Ao chegar, circunspecto
e silencioso, Dr. Cícero retirava seu chapéu de pequenas abas e se acomodava no
último banco da modesta capela. Interessante era o rigor do horário: sempre
quinze minutos antes do Padre Caetano proceder ao início da missa. Mais rigoroso
e intrigante era o horário da partida: no momento da comunhão. Jamais recebeu a
benção final da celebração, o que muito incomodava às beatas, gerando
reprovações religiosas. Corriam os últimos anos da década de cinqüenta e a
sociedade brasileira experimentava, após sérias conturbações políticas,
inclusive o dramático suicídio de seu presidente, o exagerado otimismo
difundido pelo governo de Juscelino Kubitschek. Desenvolvimentismo,
modernidade, Bossa Nova e Brasília: eis as expressões e bandeiras exaltadas
naquele contexto.
Era, de fato, um cidadão estranho. Dr. Cícero Toledo de
Andrade. Apesar de nascido na Fazenda Memorial, proximidades da Vila da Praia –
diminuta povoação contígua ao Distrito de Olivença, que, por sua vez, pertencia
administrativamente à famosa Ilhéus dos abastados coronéis do cacau -, dela se
apartara tão logo feito homem, enviado pelos pais para estudar na capital
federal, a já glamorosa cidade do Rio de Janeiro. Tempos em que sua família
dispunha de recursos materiais e desfrutava de considerável prestígio político
na região cacaueira.
Filho único, Dr. Cícero teve uma infância protegida, sem
amigos. Jovem, era recatado e de poucas palavras. Dizia-se, à boca miúda, ser
um sujeito arredio. Em quase nada se assemelhava aos genitores. Nem física,
sobretudo com relação ao pai, e nem socialmente. Durante o longo período de
afastamento, computando-se os estudos e o exercício da profissão advocatícia,
cuja soma perfazia vinte anos, raras vezes visitava a Fazenda, o que apenas se
dava quando dos festejos natalinos, dias, entretanto, em que se mantinha alheio
aos contatos com os seus conterrâneos, primos e demais membros da família.
Limitava-se, de quando em vez, a breves conversas com a sua irmã adotiva, sobre
quem, logo adiante, se tratará. De fato, pouco se sabia de suas experiências
profissionais no sul e muito se especulava acerca da sua vida pessoal.
O retorno deste intrigante cidadão deu-se por motivo grave,
vale dizer uma obrigação. Justamente quando completara 42 anos e pouco mais de
duas dezenas de residência na alcunhada cidade maravilhosa, seus pais,
ensejando viagem de passeio ao norte do estado, vitimaram-se, fatalmente, num
desastre de grandes proporções. Tendo saído o casal de Ilhéus para Salvador,
nesta capital marido e mulher ingressaram no trem da Companhia Leste
Brasileiro, com destino à cidade ribeirinha de Juazeiro, aprazível localidade
banhada pelo majestoso Rio São Francisco, onde alguns baianos se recolhiam para
gozo de férias, oportunidade em que também, navegando pelas ditosas águas do
chamado “rio da integração nacional”, aportavam na não menos bela Petrolina,
cidade pertencente ao estado de Pernambuco. Entretanto, a locomotiva
drasticamente explodiu na bucólica Estação de Serrinha, matando a maioria de
seus passageiros, como, também, a alguns residentes daquela religiosa e
simpática cidade sertaneja. Comoção geral!
Carecia, portanto, o recatado bacharel assumir os negócios do
pai, dar cabo das duas grandes fazendas de cacau, da outra de gado e, ainda,
administrar alguns poucos imóveis alugados em Ilhéus, constituindo-se, tais
bens, no espólio familiar. Necessário ressaltar que tão logo partira, ainda
quando jovem, para envidar seus estudos no Rio de Janeiro, seus pais – Coronel
Antero Castro de Andrade e Maria Madalena Correia de Toledo Andrade – adotaram
uma criança de dez anos como filha, talvez para suprir a falta do único
herdeiro. Chamava-se Verônica e, ao contrário do filho afastado, era uma menina
alegre, prestativa, expansiva de comportamento e benquista por todos. Transformar-se-ia,
quando da volta do Dr. Cícero, na sua fiel companheira, na verdade a única
criatura com quem este reservado bacharel permitia confabulações. A partir
desse reencontro, intrigantes revelações se dariam.
Velhos tempos, velhas desconfianças! Razão do renitente
comportamento reservado de Cícero desde quando morador da Fazenda Memorial –
tempos da infância e da adolescência – e enquanto inexpressivo partícipe dos
festejos na Vila da Praia, não raro ausente, os mais achegados amigos de seu
pai, bem como muitos dos parentes próximos, todos, enfim, comentavam sobre a
conduta pouco amistosa do filho do Coronel Antero. Comentários que atrelavam a
esta pobre expressividade de gestos e de palavras as perceptíveis discrepâncias
físicas entre pai e filho. O Coronel, além de falante e dono de um temperamento
agitado, trazia a tez morena, quase acaboclada, diferentemente da pele alva,
dizia-se quase transparente do seu único e estranho filho. O Coronel, em
especial, era presença freqüente e destacada nas várias efemérides que se davam
nas cercanias. Com o correr dos anos, falatório que progressivamente gerava,
sem zelos, incômodas suspeições.
Os sepultamentos do Coronel e de Dona Madá – assim
carinhosamente tratada por todos - tiveram, como previsto, grande audiência.
Até o Bispo se fez presente para recomendação das almas. Solene missa na
intenção dos defuntos teve lugar na capela da Fazenda Memorial, secundada por
grande e silencioso préstito até o cemitério da Vila da Praia, por sinal campo
santo criado e fundado pelo Capitão Andrade, então o avô do bacharel Cícero.
Durante muito tempo outro não foi o assunto nas pequenas tendas e biroscas da
Vila e, do mesmo modo, nas rodas e encontros políticos na cidade de Ilhéus.
Aliás, vários deputados e o próprio prefeito da atrativa cidade cacaueira
fizeram-se presentes às cerimônias fúnebres, quando lamentaram o precoce e
violento passamento do prestigioso casal.
Para o Dr. Cícero, além da perda dos pais, e mais
particularmente da mãe, a mudança significava delicada adaptação a um mundo com
o qual, na real, nunca se identificara e, por isso mesmo, poucas vezes e de
forma discreta fizera-se presente. Mais ainda: não era de sua competência e
gosto administrar produções de cacau, criar e negociar rebanhos de gado ou, ainda,
cuidar de imóveis e de alugueis. Era homem urbano e afeito tão somente ao
estudo das leis. E foi nesta mudança cruciante de vida que Verônica, sua irmã
postiça, teria valorosa participação, na medida em que, com o passar do tempo e
as naturais necessidades de condução daqueles negócios, se tornaria, de fato, a
competente gerente dos diversos bens da enlutada família. Dr. Cícero, por
outras razões de cunho afetivo, também padeceu profunda tristeza pela premente
necessidade de deixar, sorrateiramente, a cidade do Rio de Janeiro.
A aproximação com Verônica resultaria, para o bacharel,
conseqüências inimagináveis, pois a amizade contraída com a irmã adotiva se
solidificou e naturalmente ensejou uma relação de confiança e intimidade jamais
por ele experimentada. Verônica, de atuante assessora dos negócios e parceira
de todas as horas, tornou-se, rapidamente, sua confidente. A jovialidade de
seus trinta anos ao mesmo tempo acolhia e rebatia a melancolia renitente dos
quarenta e poucos do bacharel. E essa nova e respeitosa relação, que tão
somente as verdadeiras amizades desfrutam, permitiria a retirada de todos os
véus que encobriam a vida “misteriosa” desse estranho bacharel.
Eis os fatos.
Conquistada a amizade do irmão, conquista inegavelmente
fundamentada na honestidade de sua conduta, Verônica, ainda que sutilmente,
provocava conversas atinentes às experiências do bacharel no Rio de Janeiro, à
vida movimentada da exuberante cidade, mais detidamente acerca do seu povo e da
profissão escolhida. Sobretudo, escutava com dedicada paciência aos relatos do
Dr. Cícero. Esta postura respeitosa muito contribuiu para auferir a confiança
desejada. Aproveitava esses papos mais íntimos, tidos geralmente após as ceias
na boca das noites, e também contava de sua vida, das dificuldades enfrentadas
pelos seus pais biológicos para a criação dos filhos, já que empregados de
fazenda, subjugados pelos autoritários e avarentos patrões. Confessava,
repetidas vezes, a imensa gratidão sentida pelos pais adotivos, em memória dos
quais, inclusive, encomendara dezenas de missas.
Na data em que o Dr. Cícero aniversariava, como de costume
sem regalos, Verônica sugeriu-lhe um passeio para Ilhéus, onde, segunda ela,
provariam de um bom vinho e apreciariam a bela orla da cidade. Tendo relutado
de início, o bacharel aquiesceu ao pedido da irmã e, para surpresa dos
empregados e agregados da fazenda, vestiu um de seus paletós de trabalho – encalhados
desde o sepultamento dos pais -, solicitou os serviços de Seu Olegário, que
antes de se transformar em motorista da família cuidava dos animais e
ferramentas da grande propriedade, e braços dados à alegre irmã tomaram,
juntos, o rumo da cidade-sede do cacau.
Após comes e bebes e alguns poucos encontros dispensáveis com
personalidades que também se encontravam no restaurante escolhido, já altas
horas da noite, o bacharel embriagou-se. Não era dado a beberagens. Com a ajuda
de Seu Olegário e de dois prestativos garçons, Dr. Cícero foi levado para a
pensão na qual previamente, logo que chegara à cidade, havia reservado três
quartos para o consequente pernoite. Ali, na varanda daquele modesto e
acolhedor estabelecimento, enquanto curava os efeitos de sua farra etílica, o
bacharel desatou a chorar e, aos poucos, tendo disponíveis a apurada atenção e
o ombro amigo da sempre solícita irmã postiça, pôs para fora seus segredos. Foi
um duro e comovente relato, permeado de dramáticos acontecimentos familiares e
por uma confissão certamente inesperada para a receptora.
Sensibilizada, Verônica empalideceu ao saber, da boca do
próprio irmão, de duas graves acusações, respectivamente direcionadas ao
falecido Coronel Antero e a sua amantíssima esposa. Ao final, tomaria conhecimento
do drama particular do irmão.
Dr. Cícero, entre soluços incontroláveis, asseverou à Verônica
que, quando criança, escondido no corredor e bem posicionado próximo à alcova
dos pais, escutara, em algumas oportunidades, altercadas discussões do casal,
as quais, geralmente, se davam consonantes à presença do Tio Herculano na
Fazenda Memorial. Tratava-se do irmão do Coronel Antero e que lhe devotava
exagerado sentimento protetor. Ele pouco retribuía a e até confessou não aturar
muito aqueles mimos. Na verdade, o que sentia era a carência afetiva do pai,
mal recompensada, portanto, pela incômoda atenção disponibilizada pelo referido
tio. Sobre sua mãe, apesar do que descobrira, nenhuma reclamação esboçava.
Eis o caso: numa madrugada de chuva torrencial, tendo chegado
encolerizado à fazenda, o Coronel irrompeu no quarto em que já dormitava Dona
Madá e, aos gritos, passou a espancá-la ferozmente. Despertado pelos pedidos
desesperados de clemência da mãe, disse que em vão tentou defendê-la, momento
em que recebeu um violento tabefe do Coronel, acompanhado de um adjetivo antes
jamais a ele direcionado: “chispa daqui
seu infame bastardo!”. Não havia como interceder junto ao pai avantajado e
enraivecido. “Vagabunda” era o principal e tantas vezes repetido xingamento
proferido pelo Coronel, sacolejando a sua acuada esposa. Cenas deprimentes para
uma criança indefesa.
Com a chegada de Dona Diná, a velha cozinheira da casa, e do
finado Seu Gervásio, caseiro e cocheiro do ali endemoniado Coronel, Cícero foi
retirado do quarto e levado para o corredor. Daí, entre soluços e graves
receios, ouviria, por fim, a grave acusação do pai no bojo de uma revelação
impensável de ser ouvida. Era, portanto, o mote de toda aquela incontrolável
cólera paterna: “Adúltera miserável! Este
filho da sua leviana prevaricação será por mim renegado por toda a vida! E se
até hoje, sem saber, ele dispunha de dois pais, um falso que sou eu e um
canalha que lhe é pai verdadeiro, hoje ficará órfão de ambos! Mandei aquele mau
caráter para os quintos dos infernos, aliás, para onde deveria encaminhá-la
também. Mas tenho uma honra a preservar! Ninguém e nem você, e muito menos
aquele irmão traidor e degenerado, terá o direito de macular a minha história!
Vagabunda!”. Cícero mal havia completado cinco anos de idade. De uma só
vez, saberia da mãe adúltera, do tio traidor e do pai assassino. Máculas indeléveis!
Erros irreversíveis!
Para Verônica, estava de certo modo explicada toda a
estranheza perceptível na conduta daquela criatura ensimesmada, que se
perpetuara, afinal, por toda a sua vida. Também entendidas as diferenciações
físicas e de comportamento entre pai e filho, as quais sempre pautaram as
suspeições dos mais achegados à família Toledo de Andrade. Porém, aquelas
inesperadas e bombásticas revelações ainda ganhariam mais dramaticidade. Dr.
Cícero, olhos marejados, fitando corajosamente a querida confidente, com uma
clareza nunca antes exercitada quando de suas conversas, firmemente confessou: “Sou um infeliz pervertido! Não porque me
envergonho da minha condição. Pois essa vergonha, de fato, é inaceitável. Mas,
sobretudo, porque, premido pelas circunstâncias das mortes dos meus não menos
infelizes progenitores, tive que abandonar o meu querido parceiro, o qual,
ceifado por um desenfreado inconformismo, suicidou-se. São esses, minha cara
irmã, os meus inesquecíveis dramas e torturantes receios! Não há correção para
a minha inditosa trajetória de vida”.
Sensibilizada, lágrimas umedecendo-lhe a face, Verônica
acolheu ao irmão em seus braços e atrelados permaneceram por longos minutos.
Nenhuma palavra foi pronunciada. Dois seres ali, através de um sincero e
desejado abraço, buscavam a paz, o consolo, a resignação. Nunca mais seriam os
mesmos.
No curso de três semanas, Dr. Cícero empreendeu longa viagem
ao exterior. A tudo abandonou. Após onze meses do seu sumiço, retornando ao
Brasil, endereçou breve carta à Verônica, na qual agradecia toda a dedicação da
irmã e informava do seu novo paradeiro: a cidade de São Paulo. Na referida
missiva, confessou padecer alguns problemas de saúde, realidade que
determinara, afinal, a escolha pela terra bandeirante. Na Paulicéia,
entretanto, não lograria êxito na retomada de sua profissão. Talvez por isso,
ou provavelmente pelo conjunto das adversidades que solitária e drasticamente
enfrentou no transcorrer da sua atribulada vida, a exemplo do parceiro
inconformado, passados dois anos de desilusões, também daria cabo da sua
existência, projetando-se de um arranha-céu da agitada metrópole.
Verônica, que muito lamentara a partida inesperada de seu
irmão adotivo para o exterior, sofreria ainda mais com a notícia de seu precoce
e dramático passamento. Vencidos os sofrimentos, razão de sua inegável
capacidade para reagir as desditas da própria vida, deu prosseguimento, por
muitos anos, à gerência competente dos negócios herdados e, por merecimento,
teve uma morte tranqüila, já idosa, amparada pelos amigos e admiradores. Antes
de sua derradeira partida, cuidara, com extremo carinho, de várias crianças
despossuídas na creche que então fundara nas cercanias da Fazenda Memorial.
Intrigante coincidência: o seu falecimento dar-se-ia na mesmíssima data em que
nascera, tempos atrás, o adorado irmão postiço, o estranho bacharel.