Pelos atalhos sinuosos da caatinga, sob inclemente sol e
palmilhando o solo esturricado, meus pés, calejados, sinalizaram-me a
derradeira hora de empacar. Não mais suportavam um único passo. Como se dádiva
dos céus, a curta distância eu mirei uma esquálida barriguda que, apesar de seu
estado quase terminal, serviu-me de alento, concedendo-me, portanto, a sombra
ansiada, pois que árvore frondosa. E tudo sob o domínio dum silêncio sepulcral.
Sorte que o entardecer já pintava, mesmo que timidamente, a sua bela e inigualável
cor âmbar sobre o traço imaginário do horizonte, o que naturalmente amenizava
aquela quentura. Já sentado e buscando a harmonia da respiração, pus na minha
garganta ressecada os últimos goles da água morna que restava no meu gasto
cantil. E exausto, literalmente mergulhei num sono profundo. Deu-se o sonho.
Ei-lo!
Cheio estava o açude
como não testemunhava fazia bastante tempo naquelas belíssimas paragens
catingueiras. Amanhecia e relativamente próximo de onde eu me encontrava
refestelado, só e embevecido pela aurora acolhedora, vi dois velhos pescadores
ancorando lentamente a sua canoa do outro lado da margem e da tosca embarcação logo
retiraram, com considerável sacrifício, a parca pescaria auferida na madrugada,
mas de inegável serventia para o novo dia que se anunciava: quatro tilápias e
dois tucunarés, os quais foram, com justiça, ali mesmo divididos. Recolhidos os
remos e os poucos apetrechos, apertaram suas mãos e penetraram,
silenciosamente, na caatinga. Seus pobres lares o destino.
No exato momento em
que os homens desapareciam, vislumbrei uma silhueta admirável, saída de não sei
onde e que, a passos lépidos, cada vez mais rapidamente de mim se aproximava.
Franzi a testa e apertei meus olhos. De imediato percebi a beleza de seus
cabelos esvoaçantes que pareciam dançar ao leve e compassado ritmo ditado bela
brisa que ali a tudo poeticamente refrescava, ensejando a serenidade da vida
nas plagas do meu adorável sertão. Descompassado tão somente o meu coração.
Meus olhos lacrimejavam
e, quando ensaiei levantar-me para interceptar aquela linda criatura parida
possivelmente das águas do açude, ou talvez das poucas e tão brancas nuvens que
emolduravam o azul celeste do deslumbrante céu sertanejo, fui por ela arrastado
para o ar, para as alturas, para aquelas nuvens sedutoras, que me lembravam
cortinas de neve a roçar a minha pele sedenta de carícias. E como dois pássaros
- carinhosamente ajuntados por uma energia jamais por mim experimentada – nós
dois, mãos dadas, sobrevoamos todo o açude, num vôo extraordinário, mágico,
contemplativo.
O percurso envidado
do açude para a Serra do Piquaraçá de Monte Santo, para o majestoso Santuário
da Santa Cruz, deu-se num diminuto tempo apenas necessário para três leves piscados
em nossos olhares ternamente entretidos. A bucólica capela de seu topo,
ornamentada de rosas brancas e vermelhas e docemente perfumada de alecrins, estava
como se cuidadosamente preparada para o nosso feliz pouso. Não havia ninguém a
nossa espera. Mas uma melodia suave ecoava do recôndito da histórica
edificação, entoada, com maestria, por cítara afinadíssima. Ali, à frente daquele
rude e singelo altar, pousamos nossos joelhos sobre o chão frio de pedra
polida, alteamos nossos olhares e uma luz indecifrável, ao modo de uma auréola
gigantesca a parir luminosidade sobre nossas cabeças, emanada das frestas das
telhas do humilde templo, banhou todo o ambiente, ao tempo em que a ventania
anunciava a chegada, lá fora, dos amigos espirituais.
Revi, fascinado, as
faces felizes dos meus entes queridos. Embriaguei-me com os seus olhares
festivos. Senti seus abraços revitalizadores. Respirei um ar puro como jamais
havia respirado. E a melodia, aos poucos, me embalou para um sono
reconfortante. Já totalmente absorvido, sonhei que finalmente a minha deusa
soberana, a minha parceira imaginada, a musa idealizada dos meus pobres poemas,
a mulher apaixonante e apaixonada da minha efêmera e atribulada existência,
ali, exalando novo e inebriante perfume, sutilmente aparecia e, com ternura em
seus olhos cor de amêndoa, acolhia-me e transportava-me, sorridente, para o
mundo desconhecido.
Meu espírito revitalizado, de volta à terra, despertou
cuidadosamente o meu corpo! Senti-me forte para a imperativa retomada da minha longa
caminhada pelos ínvios atalhos sertanejos!
R. Dantas
Abril/15
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