segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

CONTO - A CASA DO RIO

















A casa visceralmente traduzia um passado ao mesmo tempo glamoroso e dolorido. Por mais que a saudade desvele um legado de paixões e prazeres, justamente por isso ela cruelmente confirma, no presente, sob o domínio insidioso das ausências, a impossibilidade de reviver. E, aí, naturalmente ganham vida as lancinantes lembranças.

Enlevado por tais reflexões, bicando, homeopaticamente, o seu vinho seco, inseparável companheiro das longas horas noturnas, e embalado pelo lento vai e vem de sua gasta cadeira de varanda, Artur era visitado por múltiplas imagens e mergulhava em dramáticas viagens. Nesses momentos de melancolia e soberana solidão, em que só a memória conduz aos pensamentos, era impossível o controle das lágrimas.

A chuva fina entoava um dissonante ressoar de pingos, desenhando poças que logo se desfaziam para dar lugar a outras diferenciadas, conformando novos traçados no amplo terreiro. De quando em vez, Artur ouvia, absorto, ruídos de portas mal fechadas ou repentinos estalidos de madeira, como se os espíritos dos antepassados ou até mesmo a centenária mesa em que estes - quando de suas últimas encarnações aqui na terra - costumavam prazerosamente comer e muito prosear ali também requisitassem, saudosos, a sua histórica presença.

Artur, que no passado recente desempenhara as funções de coletor-chefe, quando praticamente vivia a bordo das locomotivas da Viação Férrea Leste Brasileira, palmilhando uma infinidade de pequenas cidades e bucólicas vilas, realidade benfazeja que lhe proporcionou muitas amizades em diferentes localidades visitadas, agora, ali sentado e só em sua antiga e aprazível vivenda, às margens do São Francisco, nas Alagoas de Graciliano Ramos, maturava suas derradeiras noites devorando livros e vinhos, mas, sobretudo, ceifado por caras recordações. Desquitado, também não tivera filhos de seu efêmero e polêmico casório.

Fazia pouco mais de dois meses, premido por tais lembranças e, certamente, desejando ocupar-se de algo que lhe tolhesse o tempo, talvez mesmo por ter completado setenta anos de labutas e alegrias, finalmente decidira escrever suas memórias. Doutor Clementino Dias - seu médico particular, com quem, todavia, mais conversava amigavelmente do que verdadeiramente se consultava -, muito lhe cobrava essa tarefa e exultou ao saber da decisão de Artur envidá-la. Encargo para o qual se dizia despreparado, apesar de sempre produzir belos textos quando assim a necessidade o premia. Após longas madrugadas de insônia, regadas a vinhos e lágrimas, negociando com a insistente modéstia para se reconhecer um bom escriba, são estas as lembranças que ensejaram o relato a seguir e eu, como seu único e último amigo, as socializo para o devido conhecimento.


 “Breves Reminiscências”. Piranhas, setembro de 1954

Escrevo, ainda, sob os impactos do suicídio do nosso polêmico e rechonchudo presidente. Fácil imaginar a conturbação e, sobretudo, o carregado sentimento lutuoso que devem ter tomado conta das ruas da belíssima capital federal, em razão do dramático passamento do idolatrado ditador de Bagé. Permanecerá entre nós o varguismo? Arriscado qualquer precipitado palpite! Certamente mais fácil é conceber o remorso e os receios cruciantes de seus ferrenhos opositores, dos quais aqui logo me vem ao pensamento a figura controversa e agitada do jornalista Carlos Lacerda, grande amigo e correligionário de meu já falecido pai. Que o grande séquito de viúvas getulistas não lhe venha no encalço e, assim, uma nova tragédia não se dê nessa República de erros!

Esta minha casa que ainda hoje me acolhe, vazia e tão cheia de ecos, quase que tocada pelas misteriosas águas do querido “Velho Chico”, guardiã de segredos inconfessáveis, vivenda em que me fiz homem, naturalmente me induz para que, através desses claudicantes escritos, produza o que aqui alcunho de “Breves Reminiscências”. Ao fazê-los, assim especulo, consumirei considerável tempo do meu solitário cotidiano, ocupando-me, portanto, de algo produtivo, além de alimentar-me com as lembranças ditosas de alguns acontecimentos. Contudo, do mesmo modo, intenciono exorcizar sentimentos e fantasmas que até hoje me acometem e me causam aflição. Julgo que assim procedendo não deixarei morrer comigo boa parte da história dessa querida e antes tão luminosa morada. Que seja realmente produtiva a viagem!

Lembro-me bem – Oh Deus! Que lembrança tão real! -, do dia em que aqui pisei pela primeira vez. Era a véspera do natal de 1900. Dada a singularidade da data, que obviamente proveria a todos nós um novo século, os videntes de plantão profetizavam, como de costume, as suas irremediáveis catástrofes e muitos indivíduos, seduzidos pelos seus mais distintos credos e debilitadas instruções, criam na proximidade do juízo final.  Havia somente uma semana que eu completara os meus 15 anos. Éramos seis: meu pai, minha mãe, minha doce e frágil irmã, Dona Santa e sua filha, e eu. Família relativamente pequena em relação à média de filhos que naqueles dias nasciam nestes rincões nordestinos.

Trazidos pela rude balsa, após belíssimo passeio pelo rio, vindos de Poço Redondo, Sergipe, ficamos, minha Irmã e eu, maravilhados com a beleza da casa, sobretudo encantados com o seu jardim e sua espaçosa varanda, pois que apenas para nós dois, como um presente especial de natal, nossos pais haviam escondido aquele novo destino. Júlia, minha irmã, e Serena, a filha de Dona Santa, nossa babá e cozinheira, tinham 10 anos. E para fomentar aquele iniciante fascínio, constituindo-se num garboso cartão de boas vindas, deu-se para o infinito das águas do histórico rio um crepúsculo por nós jamais testemunhado. Desembarque prazeroso. Pôr do sol magnífico. Dia realmente inesquecível.

A primeira noite na casa do rio – pois assim passamos a carinhosamente chamá-la – foi de deliciosa aventura. Ainda sem camas, curtimos as estrelas cintilando na amplidão, inebriados pela brisa da madrugada até quando o sono nos venceu na acolhedora varanda que à vivenda abraça de ponta a ponta, dando-lhe graça e vida. E logo no primeiro amanhecer, tomados por inusitado entusiasmo, cuidamos de a tudo limpar e de pôr ordem no que estava embalado, carecendo, portanto, de uso imediato. Dos brinquedos aos livros, das panelas aos lençóis, do faqueiro as toalhas, enfim, tudo asseado e devidamente acondicionado. Lembro-me, em especial, da dificuldade de meus pais para fixarem adequadamente o imponente relógio na parede principal da sala de jantar, relíquia dos tempos de meu bisavô paterno, instrumento que ainda hoje escuto as suas sonoras badaladas, ecoadas ao meio dia, às dezoito horas e à meia noite, sinalizadoras, respectivamente, dos momentos de fome, da Ave Maria e dos limites da vigília.

No belíssimo jardim, cuja grama mamãe mantinha sempre verdinha e aparada, logo cuidamos – as três crianças extasiadas - de improvisar o balanço no tronco do cajueiro e de plantar as sementes das pitangas que ansiávamos chupá-las sem demora. Também as meninas trataram de edificar sob a frondosa mangueira, que ficava um pouco mais afastada da construção, a delicada casinha de adobe e coberta de palhas secas, na qual acomodaram as suas prediletas bonecas de pano, seus estojos coloridos de maquiagem, dois pequenos espelhos e duas bancadas de madeira. Ali pertinho de nós, majestoso, corria o rio dos nossos banhos diários, curtidos, sempre, sob a supervisão rigorosa de Anastácio, o já idoso caseiro que meu pai contratara na cidade, logicamente a ele bem recomendado. Tornou-se, sem dúvida, a casa dos nossos sonhos. Tornar-se-ía, também, na carona das circunstâncias do tempo, palco e cenário de alguns dissabores em sua longeva e rica existência.

Como primeira e inesquecível lembrança – ao menos para mim -, recordo do meu primeiro beijo. Sim! Foi na casa do rio que beijei a minha primeira e proibida paixão: Serena. Para nosso azar, o gesto debutante teve uma indesejável testemunha! Os padrões da época não aceitavam e até violentamente reagiam acaso um filho de patrão namorasse, ou muito pior desejasse desposar uma descendente dos empregados, fossem eles encarregados de quaisquer funções. Intimidade que, por mais amável que fosse a relação entre os envolvidos, como de fato se dava entre meus pais e a nossa tão querida Dona Santa, era rigorosamente cerceada! Esta honesta e sempre disponível criatura, muito mais do que uma babá e cozinheira, por todos nós era considerada como um ente da família, verdadeiramente amada. Grávida e abandonada pelo marido infiel, Dona Santa trabalhara anteriormente na casa da minha avó materna. Após o falecimento desta, foi acolhida por minha mãe que carecia mesmo de alguém de confiança e que soubesse cozinhar para tomar conta de seu primeiro filho recém-nascido, este, portanto, que aqui, tomado por caras recordações e surpreendente coragem, penosamente escreve.

Vi Serena nascer muito animado pela coincidência do seu aparecimento no mundo ter se dado exatamente no dia em que eu completava cinco anos. Foi uma festança na nossa ex-morada, lá em Poço Redondo, quando meu pai, o austero Doutor Antenor Borges, me deu o mais querido e saudoso presente que até aquele dia já ganhara: um livrinho de páginas em branco, a ele acoplado uma belíssima caneta prateada. Disse-me ele com imenso carinho: “aqui está o livro de sua vida, onde escreverá com esta bela caneta tudo o que gostar, que acontece e acontecerá de agora em diante”. Passados, apenas, três meses de uso diário daquele presente, justamente pelo fato dele não me separar, o perdi para a correnteza do rio, pois que num passeio de canoa desequilibrei-me e caí na água, tendo o adorado livrinho e sua caneta perecidos no mistério daquelas águas escurecidas. Triste fim. Perda bastante sentida.

Torna-se, entretanto, destacar que quando alcançamos - Júlia, Serena e eu - respectivamente as idades de oito e treze anos, então matriculados numa nova escola em Poço Redondo, contraímos boas amizades com alguns meninos, ainda que houvesse – eu em relação a elas - relativa diferença entre nossas idades. Neste notívago grupelho, um galego de nome Fausto, de dez anos, cujo apelido pretensioso era “Bonzão”, logo criaria asas para Serena. Todos perceberam. Eu, sem tanto perceber, me incomodei. Inicialmente me enganei e tentei enganar, sem sucesso, aos demais amigos, usando como desculpa para a minha reprovação ao assédio do sujeitinho convencido a reação certamente violenta de meu pai, acaso ficasse sabendo de alguma coisa existente entre eles. Mas, de fato, sentia ciúmes e, assim, logo entendi que já olhava Serena de outro modo, sempre desejando estar próximo, às vezes até querendo beijá-la e já imaginando seus lábios tão bem feitos grudados aos meus. Sonhei com isso durante muito tempo, já que me faltava coragem para materializar o sonho e, conseqüentemente, confessar o meu mal disfarçado desejo.

Num final de tarde, quando deixávamos a escola – na oportunidade, Júlia, por estar resfriada e o céu muito carregado, permanecera em casa -, fomos, Serena e eu, colhidos por violento temporal, o que nos fez correr para a varanda de um sítio abandonado que distava, apenas, uns quinhentos metros da nossa chácara. Ao clarão do raio sobreveio um forte estrondo do trovão, o que levou naturalmente Serena aos meus braços, guiada pelo medo. Ao sentir aquele abraço que tanto desejava, fiz-lhe carinho na face e lhe disse que não se preocupasse e nem temesse, pois nada nos aconteceria e ali estava para protegê-la. Seus olhos brilharam e, aí, sem que eu previsse ser aquele o momento tantas vezes por mim ensaiado e nunca consumado, confessei meus sentimentos e beijei-lhe timidamente a sua face morena, apertando ao meu tronco aquela linda e bronzeada criatura. Para minha surpresa e indescritível alegria, ela não somente agradeceu, como, também, mais fortemente atrelou seus braços aos meus. Inesquecível momento. Ditosa sensação de bem querer.

Com o passar dos dias a minha paixão por Serena foi se tornando cada vez mais transparente, o que fez Júlia questionar os meus sentimentos. Admiti para minha irmã que estava sofrendo muito e ela, mais preocupada com a indigesta reação dos nossos pais do que propriamente com o meu sofrimento, aconselhou-me o imediato afastamento de Serena e “que não desse mais bandeira”. Dali em diante Júlia sempre condenaria meus desejos, afastando-me sempre que podia dos encontros e passeios, o que muito me contrariou e nos trouxe alguns breves conflitos.

No entanto, logo saberíamos da nossa mudança de Poço Redondo para Piranhas e isso me trouxe relativo alento, pois, além de me ocupar com os preparativos para a dita mudança, esquecendo um pouco as minhas aflições, fiquei satisfeito pelo fato de Serena ficar definitivamente livre das garras daquele galego impertinente. E não perdi a chance de, na véspera de minha definitiva partida de Poço Redondo, desabafar meus rancores dizendo àquele sujeitinho que, além de sua aparência me lembrar um coelho empapuçado, dados os dentões disformes que logo se insinuavam ao mínimo sorriso, o odor de seu suor era mais incômodo do que murrinha de bode velho. E o interessante é que ele não entendeu bem aquela agressão e calado se escafedeu. Rude galego!

Uma vez mais a tempestade daria a oportunidade, a mim e a Serena, de definitivamente revelarmos a paixão recolhida. Nas águas do Velho Chico os clarões fantasmagóricos dos raios produziam imagens tenebrosas. Nossos pais haviam saído para a reunião quinzenal da Paróquia e Júlia cedo adormecera. Amedrontados diante daquela borrasca, perscrutávamos a chuvarada da varanda. A ela relembrei do temporal por nós vivenciado em Poço Redondo e de novo confessei meus sentimentos. Naquela noite de nova tormenta, aproximei-me e peguei em suas mãos que estavam frias. Seus olhos sinalizaram-me aquiescência. Aí, ansioso, apliquei-lhe ardente beijo, que me foi, com a mesma intensidade, retribuído. Era o meu primeiro beijo! Era o dela também! E mais gostoso ainda porque se dava na nossa casa do rio. Ali demos início ao nosso relacionamento afetivo. Preocupados, antes mesmo de trocarmos novo e demorado beijo e de nos apartarmos daquela varanda, combinamos que apenas confessaríamos o namoro à Júlia, de quem julgávamos contar com a necessária cumplicidade e o imperioso apoio. Namoro a ser castigado e proibido pelos nossos pais acaso a estes fosse dado conhecimento. Todavia, como ingenuamente pensamos, não estávamos naquela varanda, sob os ditames da ventania, a sós!

Dona Santa, temerosa em razão das chuvas torrenciais e, mais ainda, assombrada com a vilania dos cortantes raios clareando as águas do rio, a tudo testemunhara da porta da cozinha, de onde, cuidadosamente escondida, derramou lágrimas já prevendo o desacerto que causaríamos em sua vida a partir daquele nosso indevido envolvimento. Pressentiu que ali terminaria a sua vivência e, logicamente, a de sua filha, naquela família que as adotara e para a qual tanto tempo se dedicaram com lealdade.

Dolorida e incompreensível a notícia, logo no entardecer do dia seguinte, repassada pelos nossos desconfiados pais, dando-nos ciência de que Dona Santa e Serena, para incompreensão deles, inconformidade de Júlia e profunda tristeza minha, partiriam definitivamente da nossa casa, tendo para tal decisão a alegação da morte de uma irmã da adorada e prestativa cozinheira que, em face da referida tragédia, carecia urgentemente acolher aos seus sobrinhos tornados órfãos. Assim, em dois dias nos deixariam e, sem mais palavras, rogavam a nossa difícil compreensão.

Desesperado, saí sem rumo perambulando as margens do rio, chutando as águas e bradando aos céus minha revolta diante daquela aterradora notícia. Vários planos desatinados passaram por minha cabeça atribulada, pois não poderia permitir a partida de Serena. Seqüestrá-la? Mas, para qual destino? Dadas as nossas idades e sendo eu filho de quem era, a nossa fuga certamente não lograria êxito. Cansado e trêmulo, sentei sob a meia sombra de uma umburana de cheiro e copiosamente chorei. Somente dei-me conta do tempo que já havia desaparecido de casa quando ouvi meu nome ser repetida e desesperadamente chamado pelo velho Anastácio, que fazia algum tempo me procurava pelas redondezas, a mando de meu pai. O caseiro astuto e experiente, sem que eu nada lhe revelasse, aproximou-se e acariciou os meus cabelos, dizendo-me com terna serenidade: “não se avexe tanto meu jovem. O tempo a tudo cura e o amanhã somente a Deus pertence. Tenha fé que tudo passará”.

Tal qual o primeiro beijo, a partida de Serena marcou-me profundamente. Foi como se um pedaço de mim tivesse sido extirpado, deixado de existir e o brilho da casa do rio houvesse perecido. Senti no coração uma sensação de vazio indescritível. Jamais esqueci o seu olhar de derrota a me fitar na hora da partida e, em sua face delicada de menina, vi, pela última vez, escorrer as lágrimas que, na verdade, choravam a nossa comum e cruel tristeza. Passariam quase dez anos para que eu, uma vez mais visitado pelas surpresas da vida, fitasse novamente Serena. Foi num baile de carnaval em Maceió, igualmente numa noite de chuva, que a vi dançando alegremente no meio do salão. Meu coração pareceu despregar do peito e sair pela boca. Estatelado, senti meus pés presos ao piso e permaneci feito uma estátua a observá-la nervosa e silenciosamente. Quando, enfim, decidi abordá-la, vi um sujeito bem apessoado tomá-la nos braços, beijá-la desbragadamente e levá-la, sorridente, para a outra extremidade do salão. Em dois minutos já estava na rua, tomando o caminho do hotel, onde, dissecando minha angústia, derramei sentidas lágrimas e padeci longa e sofrida insônia.

Nesta noite de tristes lembranças lembrei das sábias reflexões de um jovem frei, constantes de sua nobre obra: “Só o tempo, que não corre ao sabor da nossa pressa, restitui certos episódios as suas reais dimensões, suturando os corações, arejando as mentes das paixões, definhando o ódio na medida em que renasce, alvíssara, a força promissora da esperança”.

Mas a casa do rio também me propiciaria bons momentos. Nela celebrei o meu ingresso, mediante nota máxima, no Curso de Administração. Noite de regalos inesquecíveis e de discursos apoteóticos, especialmente os que meu pai protagonizou, tomado de exacerbado orgulho em face do feito conquistado pelo seu primogênito. Por indicação prestigiosa dele, assumi o posto de escriturário na Ferrovia e, sem delongas, tornei-me Coletor-Chefe. Aposentei-me, tempos depois, ainda saudável e com aquela sensação de dever cumprido.

Também me recordo do dia em que meu pai, reafirmando o seu grande prestígio de líder político, trouxe para nossa casa ninguém menos do que o jovem jornalista, polêmico e ambicioso político Carlos Lacerda, o mais agressivo opositor do então presidente Getúlio Vargas. Meados dos anos quarenta e o mandatário-mor da Nação excursionava pelo sertão. Lacerda, na cola de suas pegadas, também se fez presente em algumas capitais nordestinas e, como de costume, disparava sua metralhadora verbal contra o presidente. Foi uma noite memorável na casa do rio. Uma plêiade de políticos compareceu em nossa vivenda, oportunidade em que a indicação do nome de meu pai foi por toda aquela ilustre camarilha referendada para concorrer a uma cadeira na Câmara Federal. Noite de beberagens, acaloradas discussões e promessas de mudanças políticas. PSD, UDN, PTB e, com menor cacife, o PCB envidavam suas disputas e buscavam a maioria dos votos dos brasileiros. Nestas ocasiões eu sentia pena de minha mãe, Dona Bentinha, que se esbaldava nos preparativos para bem recepcionar toda a comitiva de notáveis e, dessa forma, agradar a meu pai. E uma envolvente e bem executada valsa foi garbosamente encenada na grande sala desta nossa acolhedora casa do rio.

Outra partida, entretanto, me acometeria de maus presságios. Minha frágil irmã, que desde seu nascimento padecia de problemas respiratórios, acometida por mais uma grave crise asmática, numa madrugada de aflições, partiria de casa para tratamento emergencial na capital, de onde não mais voltaria. Júlia, internada durante longos três meses, tendo seus combalidos pulmões deixado de funcionar, veio a óbito sem sequer completar seus trinta anos. Sua doença era pelos meus pais ocultada, irracionalmente minimizada. Todavia, todos desconfiavam da fragilidade de sua saúde. Novamente imperaram as convenções tão descartáveis dos ditos padrões sociais. Hoje, sem receios, ainda que atrasadamente, eu posso confidenciar nestes escritos tanta insensatez nesta casa vivenciada. Perda irreparável. Um pouco da vida de minha mãe também se foi.

As mortes de meus pais, apesar de dolorosamente sentidas, tiveram as suas tristes ocorrências de acordo com a obviedade do tempo. Ambos faleceram velhos e colhidos por enfermidades aceitáveis. Minha mãe - que nascera, inclusive, um ano antes que meu pai -, dada a sua diabetes crônica e a gula incontrolável por doces, foi por essa indigesta enfermidade ceifada aos sessenta e cinco anos, deixando apenas por mais três anos meu pai numa viuvez comovente. Este, por sua vez, desde a juventude padecia crises insuportáveis de gota, razão dos altos níveis de ácido úrico no seu organismo. Assim como mamãe, o velho não se cuidava e a falência dos rins contribuiu decisivamente para o seu falecimento. Esta casa, quando de seu velório, uma vez mais ficaria pequena para acolher a tantos políticos e correligionários, além da parentela agregada que aqui se fez presente e, tal qual se dera no dia da minha formatura, muitos e logicamente mais dramáticos foram os discursos proferidos. Quando retornei do sepultamento dei-me conta de que, além do empregado e amigo Dorival, apenas eu havia na casa sobrevivido, ali vulnerável ao abraço gélido da solidão.

Entretanto, do velório de meu pai nunca esqueci as palavras hilárias do nosso prefeito Gibão, homem criado na roça, inveterado bebedor de cachaça e que muito patinava com o plural das palavras, sendo seus discursos maculados pelos erros verbais, os quais, para seu azar, foram rebatidos pelo folclórico bêbado Januário. Protestando os seus leais sentimentos à figura do líder falecido, assim se expressou ao pé do esquife:

PREFEITO GIBÃO: “pode partir tranqüilo meu caro Antenor! Pode arribá lá pra riba que Deus está a guiá nós todo sem a sua ilustre presença, pois somo mesmo bastantemente maió do que tudo. E por falar em tudo, tudo mesmo o sinhô fez por esta nossa Piranha adorável, Piranha que segue uma vida agora ilibada porque pelo sinhô foi bem encaminhada. Acabosse os tempo ruim das rua enlamiada do pobre Bairro da Palha, apois foi vosmicê que aterrô-las e calçô-las”.

E, aí, o nosso atarantado Januário, cambaleante, esbravejou:

JANUÁRIO: Êpa! Oh homi doidô! Falando nos meio dessas madame de rôla e calçóla! Valheme Santo Deus! Me sirva uma cachaça aí mô fio!

Impossível era não rir, ainda que mascaradamente, diante de tão instigante palavrório! O prefeito Gibão, a todos surpreendendo, também faleceria apenas uma semana após o passamento de meu pai. E a nossa Vila de Piranhas vestiu-se de luto, particularmente o povo freqüente das rudes tabernas da feira e, mais especialmente ainda, os pobres moradores do Bairro da Palha. Januário? Este infelizmente foi barrado no velório.

Vi-me só, neste charmoso e imenso casarão, após a partida de meu pai. Até esqueci de aqui dizer que o velho Anastácio, já cego de um olho, havia, pouco antes da morte de minha mãe, nos deixado e retornado para o seu torrão natal, alegando, com justa razão, que desejava morrer na companhia de seus filhos crescidos, lá na sua amada Serrinha.  Tomou o trem e nunca mais tivemos qualquer notícia deste honesto trabalhador. Em seu lugar, para minha sorte, aqui chegou o já citado Dorival, a quem chamo “Coringa”. Trata-se de um interessante cidadão, dotado de inteligência e bom humor, funcionário polivalente e que até hoje se constitui na minha única companhia nesta casa, diria mesmo meu anjo da guarda. Tornou-se, como não poderia deixar de ser, um grande amigo.

Todavia, haveria uma noite inesquecível nesta casa, na qual eu vivenciaria rudes aflições. Refiro-me a noite da festa prévia e efusivamente agendada para a celebração do meu indesejado casamento.

Conheci a senhorita Tereza Cristina da Silva Raposo num baile em que meu pai - o sempre ditador das minhas condutas - fez questão para que eu a cortejasse. Logo entenderia aquele desejo paternal. A criatura em questão era a única filha do velho fazendeiro Diógenes Raposo, correligionário de meu pai e, como este, bastante respeitado e autoritário. Tereza até que inicialmente me impressionou, no que pese o seu jeito de “menina bicho do mato”, pois que vivia recolhida em sua rica propriedade, razão da rígida criação de seu pai, o qual, como aliás todos os senhores daquela época faziam, dava como únicas opções para a sua mimada e casta filha a de casar com o marido por ele escolhido, ou, a isto se negando, arrumar as malas e tomar o caminho dramático do convento.

Após dançarmos e pouco conversarmos sobre assuntos banais, nos despedimos ante a promessa de meu pai de visitarmos ao Coronel Raposo – pois assim era alcunhado – na semana seguinte. E para aquela imponente fazenda, situada nas proximidades da Vila de Penedo, fomos todos: meu pai, minha mãe e minha adoentada irmã, que inclusive padeceria por lá séria crise asmática. Tinha eu apenas 23 anos.

Para minha inditosa surpresa, meu pai, após ingerir três taças de vinho pediu, em meu nome, mas sem me consultar, a mão da tímida e assustada moça em casamento. Silêncio constrangedor, apenas rompido pela risada prazerosa do Coronel Raposo que, além de conceder a sua filha para o requisitado matrimônio, ergueu sua taça de vinho e conclamou a todos para um entusiasmado brinde. Brindaram e beberam ao meu futuro casório ante a minha cara de paisagem!

A partir daquela noite de compromisso tive que não apenas suportar as ameaças de meu pai em resposta às minhas de tudo interromper, mas, do mesmo modo, somando-se a tal estado beligerante em casa, conviver com a dramática chantagem a mim direcionada pelo Doutor Antenor em relação ao estado avançado da enfermidade de minha mãe, que, tal como ele, tanto ansiava por aquele casamento de encomenda. Vivia dia e noite matutando como escapar daquela cilada sem contar, entretanto, com qualquer solidariedade. Júlia, coitada, cada vez mais frágil em função de sua asma crônica, pouco se intrometia e eu, logicamente, evitava aborrecê-la com o meu drama.

Instado pelo Coronel Raposo, obviamente com a concordância de meu pai, tive que logo noivar e, por isso mesmo, freqüentar mais regularmente a casa da minha passiva noiva. É que as famílias ditas de ilibada reputação de Piranhas tinham que testemunhar todo aquele processo ser moral e obrigatoriamente cumprido: namoro, noivado, casamento. E, é claro, sob os auspícios imperiosos da virgindade feminina!

Devo confessar: Tereza Cristina não me causava nenhum torpor e até percebia que ela tentava me cativar o máximo possível. Naturalmente muito mais conversávamos do que namorávamos, até porque cometer qualquer ato indecoroso antes do casório era algo passível de ser violentamente reprovado. O medo das conseqüências inibia aos instintos. Porém, com o passar dos dias - o casório fora marcado para o período de seis meses, dando-se tempo hábil para os preparativos necessários –, aqueles encontros foram se tornando enfadonhos para mim e creio, até, para ela também. Tereza logo percebeu a minha pouca vontade para não somente me fazer presente em sua casa, mas percebera, sobretudo, que aquele casamento não era por mim desejado.

Para encurtar a história, o casamento se deu numa noite de sábado, no dito mês das noivas, em maio de 1907. A casa do rio encheu-se de convidados e até o Bispo se fez presente para celebrar o casamento dos abastados e assustados jovens alagoanos. Noite realmente inesquecível e digna de constar nas páginas dos romances melodramáticos.

Após a cerimônia religiosa, decidi que, em razão das minhas concessões, inclusive do meu futuro aos caprichos de meu pai, que beberia desregradamente, querendo com isso demonstrar a minha revolta, ou mesmo buscando, através dos naturais efeitos do álcool, esquecer, ainda que temporariamente, tudo aquilo que ali se dava e que só a mim dizia respeito, causando-me dores e receios torturantes.

Conhaques, cachaças e vinhos integraram gulosamente o meu cardápio etílico. Tendo me livrado do fraque com o qual, aborrecido, me casei e arregaçado as mangas de minha camisa de seda branca, o que logicamente contrariou as convenções do Doutor Antenor, sem qualquer cerimônia, puxei indistintamente para dançar todas as mulheres, casadas ou não, que estivessem ao alcance dos meus braços bêbados. No início – pois assim me relatou detalhadamente Júlia no dia seguinte – até que todos riram da minha pretensa alegria. Mas os gestos exacerbados que propositadamente encenava ao tomar nos braços aquelas mulheres empertigadas foram, aos poucos, gerando antipatias, que viraram facilmente reprovações. Dançava sem estilos, tanto quanto gritava palavras repreensíveis. Das cafungadas nos cangotes frios das Senhôras aos ousados beliscões nas nádegas mornas das Senhoritas, passaria, sem controle, a imprudentemente recitar rudes versos que causariam inveja ao polêmico poeta baiano, Gregório de Matos Guerra, o alcunhado “Boca do Inferno”. Ninguém ali conseguira frear meus vis impulsos.

Meu pai, para sua infelicidade e, certamente, para minha também, não suportando mais o meu agressivo espetáculo, pegando-me grosseiramente pelo braço, tentou me retirar do salão, justamente no instante em que flertava com a esposa desajeitada do obtuso prefeito, este também já fartamente embriagado, convidando-a para mais uma dança extravagante. A minha reação intempestiva a todos surpreendeu e, como não poderia deixar de ser, muito mais o meu pai que, descontrolado, foi interceptado pelos amigos que estavam mais próximos, pois que seu gesto logo sinalizou uma agressão física a ser contra mim direcionada. Rapidamente a turma do “deixa - disso” acalmou os ânimos.

Neste momento de incômodo conflito, enlevado, sem dúvida, pelos efeitos do álcool, produzi o meu insano desabafo, ervurmando, sem zelos, toda a purulenta angústia que tanto me importunava. Assim, veementemente espargi meus sentimentos fazia tanto tempo reprimidos, dada a severa e castradora postura de meu pai para com sua família e, em particular, para com seus dois filhos. Ninguém, nem minha mãe, que rogava meu silêncio, me fez calar. Ali eu finalmente transbordava a minha revolta, vomitava meus recalques, mas eu sobremaneira expelia do meu coração atormentado as mágoas dolorosamente sufocadas, tal qual a larva de uma devastadora erupção vulcânica. Nada e nem ninguém me calaria naquela noite mal encenada.

Recambiado para meu quarto, onde praticamente desmaiei ao ser na cama despojado, dormi o sono turbulento dos atormentados e acordei com a consciência pesada dos que cometem, sob os efeitos insanos do álcool, irreparáveis desatinos. Somente neste momento lembrei-me de Tereza e que, apesar do triste espetáculo por mim protagonizado, era um homem oficialmente casado.

Saberia horas depois que minha tímida e assustada esposa fora levada de volta pelo seu irado pai para sua casa, sob os protestos veementes do encolerizado Doutor Antenor. Velhos amigos que ali iniciariam em conseqüência de suas autoritárias vontades e, logicamente, também, em razão dos meus atos insanos, um período de impensáveis dissensões e desagradáveis cobranças em sua antes sólida e fraterna amizade. O bom disso tudo – ao menos uma vez julgo pertinente o meu egoísmo – é que meu casamento sequer celebraria o primeiro ano de existência. Tereza, por acertada decisão e sincera vontade, retornaria para o seio de sua família, porém ganharia, sem demora, como absurda punição o seu internamento num convento de propalada reputação na capital baiana.

Com a velhice de meus pais e a necessidade de sempre estar ausente de casa para atender as prerrogativas da minha profissão, percorrendo, por seqüenciados períodos de tempo, várias localidades do estado, vivenciei, finalmente, a liberdade por mim tanto ansiada. E, aí, dei início, e os mantive pelas madrugadas e auroras de etílicas vigílias, aos meus agitados e acalorados casos amorosos. Granjeei fama e causei conflitos inomináveis. Muito amei e muito enganei. E, após as partidas derradeiras de meus pais, protagonizei aqui, nesta casa de sonhos e tragédias, cenas ardentes e, às vezes até, reprováveis com algumas de minhas adoráveis e celeradas musas.

Para que tais experiências afetivas não passem ao largo nestes escritos que aqui corajosamente produzo, lembrarei de duas seletas moçoilas com as quais tive a cara de pau e a engenhosidade de mantê-las, ao mesmo tempo, sob minha descarada batuta, já que, além de residirem na mesma cidade, ambas, ao seu modo, destilavam facilmente os seus ciúmes doentios. Joana e Clarissa, eis os nomes das minhas amadas mocinhas. Muito belas e gostosas para que meus insanos desejos abrissem mão de qualquer uma dessas adoráveis beldades!

As conheci num baile do Clube Social, quando com ambas dancei e para ambas metralhei as minhas propostas indecorosas. Razão do meu afoito palavreado, percebi que as meninas atiçaram seus tesões reprimidos, os quais, a exemplo do meu, insinuavam a ânsia de se libertarem definitivamente, sobretudo consideradas as rígidas posturas morais exigidas para a categoria de fêmeas que elas diziam pertencer. Devo confessar que eram mesmo nascidas no seio de duas tradicionais famílias, realidade que não foi suficiente para que eu abortasse os meus planos libidinosos. Durante seis meses as tive sob os meus domínios e, depois de muita verborréia utilizada, atingi meu objetivo de em ambas pôr o meu carimbo, tornando-as mulheres de fato.

Em razão dessa dubiedade afetiva, em algumas circunstâncias tive de almoçar ou jantar duas vezes num mesmíssimo dia para cinicamente atender as minhas obrigações de comprometido pretendente. Freqüentei, nem sei como isto conseguia, num mesmo dia, eventos cujas datas são fixas no calendário, a exemplo dos festejos natalinos e de Reis, das celebrações da páscoa e do dia dedicado às mães. Enfim, tornei-me um mágico para atender as minhas “necessidades” de amante profissional e me fazer presente ante as exigentes cobranças de ambas.

Hoje, aqui sozinho e a ousadamente rabiscar esses escritos, temo, como qualquer pecador e já septuagenário, a chegada da minha definitiva viagem. Reconheço que para esta derradeira empreitada não mais levarei ressentimentos. Sinto, inclusive, que ao exercitar esta tarefa nesses papéis que me sobreviverão e para a qual sempre me reconheci incapaz, tive amainados os vis sentimentos que ainda me perturbavam. Conforme previ no início da narrativa, exorcizei, portanto, os meus fantasmas, além, principalmente, de ter me deliciado com algumas das lembranças ditosas que aqui afagaram ao meu coração avariado.

Devo, por fim, agradecer, uma vez mais, ao meu caro e nobre amigo Doutor Clementino Dias pela insistência para que este arrazoado de casos eu produzisse! Muito grato também sou ao meu parceiro cotidiano, sempre solícito, cidadão inteligente e fiel amigo: Coringa! Para vocês deixo cópias endereçadas, as quais se somarão as duas outras que dentro do meu cofre sem segredos guardarei para as possíveis leituras póstumas. Como último desejo eu encarecidamente rogo aos pósteros que nunca esta casa do rio seja demolida.

Saudações,
Artur Cesar da Silva Borges


E assim, ainda corroído, mas também terna e compulsivamente tocado pelas lembranças, as quais fazia apenas um mês que ele conformara no que, com propriedade, intitulou “Breves Reminiscências”, o meu patrão, sábio e solitário, mas sobretudo querido amigo, deixaria esse mundo de contradições, causando-me, por certo, imensa tristeza. Cumpro, agora, com a minha última obrigação, que na verdade para mim tem o grave significado de dar conhecimento a quem de direito ou tão somente se interessar sobre fatos marcantes que pautaram a vida de um homem singular e de uma belíssima, acolhedora e inesquecível vivenda.

Dorival Brito. Piranhas, dezembro de 1954.

Roberto Dantas

Janeiro/15.

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