quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

CONTO - A ILHA DO FAROL



















Desativado havia duas décadas, o imponente farol da ilha ainda mantinha seus encantos. Ícone primacial do lugar, ele era guardião venerável de tantas e intrigantes histórias, por isso mesmo uma edificação temida de ser visitada. No passado constituía-se no único guia para as antigas embarcações que adentravam na estreita baía, cujos arrecifes e inesperadas correntezas provocadas pela viração da maré franqueavam inesperadas armadilhas para os navegadores de primeira viagem. Alguns naufrágios ali transcorreram, contados e recontados, sempre com o mesmo tom de suspense, pelos antigos habitantes, mais particularmente pelos velhos e experientes pescadores do lugar.

Não foi por outro motivo que toda aquela extensão de terra, circundada pelas águas do Atlântico, situada ao norte da capitania da Baía de Todos os Santos e em cujos solos abundavam extensos canaviais, fora batizada, no último quartel do século XVII, de Ilha do Farol. Os negros africanos edificaram o majestoso guia a custa de muito sangue e suor, para alguns até de suas desgraçadas vidas, escravos dos colonos portugueses que envidavam seus lucrativos negócios na orla do continente conquistado. Carecia a ilha de maior proteção. A notícia de que invasores holandeses protagonizaram as suas ousadas incursões na fortificada Salvador e, na seqüência, na principal capitania açucareira da Colônia, a de Pernambuco, concorreu para a edificação da pequena fortaleza relativamente próxima ao farol, da qual, todavia, restavam inacessíveis ruínas. Rota do tráfego negreiro, a ilha servira não apenas de parada providencial para as reposições das antigas naus, como, também, de pequeno entreposto para as negociações do açúcar e das aguardentes produzidos pelos seus modestos engenhos.

Belíssimas e desertas eram as praias da ilha, que logo seduziam a qualquer visitante, ricamente ornadas por denso coqueiral, sendo este secundado pelas roças de subsistência. Passados tantos anos do início da colonização portuguesa, e já no ano de 1836, quando se deram os fatos que a seguir serão narrados, apenas três povoados eram precariamente conformados: Pontal, Sossego e Funil. Neste último mal resistia, tal qual o farol, um vetusto e inacessível pontilhão, outrora a única e perigosa ligação da ilha com o continente. Por isso mesmo, poucos se aventuravam a transpô-lo, não somente em razão das péssimas qualidades desse atalho, muito estreito, sinuoso e quase sempre pontuado por imensos atoleiros, mas, do mesmo modo, porque maculado pelas crendices historicamente repassadas de geração para geração.

No topo do farol residia um velho pescador, hirsuto, cuja tez escurecida delatava a sua mestiçagem, marcado por cicatrizes em suas faces enrugadas, que de lá quase não saía e, quando raramente o fazia para comprar alimentos ou substâncias imperativos a sua sobrevivência, pouco conversava com os comerciantes do Povoado do Funil. Mais fácil era vê-lo à distância remando a sua escalifada canoa. Era inegavelmente um sujeito enigmático. Raros os moradores que visitavam o farol e, mais raro ainda, os que arriscavam qualquer breve diálogo com o “Véio Sombra”. Assim fora alcunhado em razão de postar-se na maior pedra junto ao farol, quando das noites de lua nova ou cheia, e a sua sombra se desenhar nas águas profundas e misteriosas da diminuta baía, pois que em tais oportunidades o velho não dormia, como se aguardasse a entrada, certamente inverossímil, de uma perdida embarcação. Dele se dizia ter naqueles ardilosos arrecifes naufragado, constituindo-se no único e sortudo sobrevivente do bergantim lusitano que ali afundara no final do século XVIII, cujo casco permanecia encravado nas profundezas da baía. Completara-se, já, vinte anos desse naufrágio, no qual perderam as vidas negros bantu, oriundos de São Paulo de Luanda, Angola.

A chegada de uma adolescente à Ilha desvendaria os até ali indevassáveis segredos da vida do instigante e solitário cidadão. Clara, que debutara seus quinze anos, para lá foi trazida por sua avó, Dona Júlia, antiga residente do Povoado do Funil, o mais próximo do farol, em face de sua orfandade. Filha única, Clara perdera seus pais num incêndio provocado pela escravaria rebelde na grande e rica propriedade em que nascera, situada ao sul do litoral sergipano. Não apenas o canavial fora totalmente consumido pelas imensas labaredas, mas, do mesmo modo, a imponente sede da fazenda. Aproximadamente sessenta escravos, a estes somados cinco libertos que desempenhavam serviços nas moendas e caldeiras do engenho, após matarem ao feitor e sua família, fugiram sem deixar rastros. As notícias atestavam que apenas três empregados – a ama de leite, a sua filha que fazia as funções de mucama e o velho caseiro -, por não terem aderido à revolta, teriam sido assassinados, sem que tal notícia, entretanto, fosse confirmada pelas autoridades policiais. O pai de Clara, o abastado senhor da propriedade, Doutor Requião Baptista, era reconhecido em toda a região pela sua severidade no trato com os escravos, tendo, inclusive, sobrevivido a duas tocaias anteriores armadas pelos seus agitados cativos. Do incêndio, junto com sua esposa, pereceria.

Ninguém – e nem mesmo Clara – soube explicar o que propiciara o seu salvamento da tragédia. Ela apenas recordava de dois escravos que a levaram carregada para a senzala da fazenda, quando da invasão da casa grande. Lá teria desmaiado em razão da quentura e do sufoco provocados pelas nuvens de fumaças das chamas devastadoras que acometeram a maior parte da faustosa propriedade. A avó fora avisada do triste acontecimento e, ao chegar à histórica Vila de São Cristóvão, saberia que a neta fora resgatada bastante debilitada pelos inspetores de quarteirão da Vila de Indiaroba e apenas despertaria num leito hospitalar da antiga capital sergipana.

Para Dona Júlia, tornada a única representante familiar, a vinda da neta significaria, naqueles seus longos dias de solidão, alento e alegrias, transmutando o insólito cotidiano daquela esquecida ilha. Costureira afamada, logo passaria seus conhecimentos à neta recém-chegada e, esta, por sua vez, serviria a avó com amável presteza e louvável sentimento de gratidão. Avó e neta, premidas pelas trágicas circunstâncias da vida, ganhavam a chance de viver uma relação fraterna e, naturalmente, de amenizarem a amargura angustiante de suas perdas. Dona Júlia, refém do seu passado, jamais aceitara, mesmo vitimada por precoce viuvez, a mudar-se da Ilha, afinal era o seu local de nascimento, de livre e saudosa infância, onde também casara e fizera bons amigos. Triste e impotente, a velha testemunhara a partida de seus dois filhos varões e tão somente uma vez por ano os revia. E sempre no período natalino. Da ilha Dona Júlia jamais saíra.

A primeira curiosidade – e também desobediência – que Clara teve foi justamente a de conhecer mais de perto o antigo e sedutor farol, sobre o qual logo ouviria as mais intrigantes histórias e, conseqüentemente, os conselhos proibitivos de sua avó para dele não se aproximar, particularmente em razão de seu misterioso inquilino. Também Dona Carmem, a cozinheira da casa, filha de escravos já falecidos e que tinha suas crenças enraizadas nos cultos dedicados aos seus ancestrais, atestava ser o farol “amaldiçoado” e o seu morador, por isso mesmo, a “personificação do capeta”. Crendices que faziam parte do imaginário de toda a gente daquela Ilha atlântica.

Clara, sempre quando o entardecer propiciava o esplendoroso desmantelo do sol, preenchendo o céu e os morros de um âmbar singular, gostava de escalar as pedras que serviam de anteparo natural à Praia do Funil e apreciar o belíssimo espetáculo da natureza. Era o momento em que sua curiosidade mais se desvelava. Nesses instantes de reflexão ela matutava como desvendar os mistérios do imponente farol, ali tão pertinho e disponível para a sua ansiada aventura; ou mesmo conhecer o velho, saber de suas histórias, o porquê daquele isolamento e por quais razões era um sujeito abjurado e temido. Seu desejo crescia enormemente a cada lua brilhante no céu, quando então fitava, quase sem pestanejar, aquela criatura solitária, cuja sombra, refletida na águas iluminadas da baía, mais atiçava a sua vontade.

Passados três meses de sua chegada à ilha, tendo se integrado à turma de meninos que sempre brincava no descampado que praticamente abraçava a todas as casas da rua, ao molde de uma praça irregular, Clara, ao conquistar mais fraternalmente a amizade de Letícia, garota sensível, meiga e que tinha a mesma idade, a esta revelou seus já incontroláveis desejos de visitar ao farol e, sobretudo, conhecer aquele velho que a todos causava espanto. Logicamente que a primeira reação da nova amiga foi de reprovação. Todavia, com o passar do tempo e os efeitos da persuasão de Clara, Letícia foi aquiescendo e finalmente conheceu o plano elaborado pela amiga para, com o máximo cuidado, vivenciar a perigosa aventura.

CLARA: teremos apenas três preocupações básicas: manter em segredo o nosso plano de visita ao farol; ter bastante cuidado para não despertar a atenção dos nossos amigos e, por fim, surpreender ao “Véio Sombra”. Entendeu bem Letícia? Então, quando iremos ao farol?

LETÍCIA: não sei se devo. Tenho medo, muito medo!

CLARA: medo de quê? Até parece que cometeremos algum crime!

LETÍCIA: medo de meus pais saberem, eles não me perdoariam. Sem falar do meu irmão Duda, um sujeitinho que se diverte com o encargo delegado por minha mãe de vigiar-me dia e noite. Menino enjoado! Um dedo-duro! Além disso, Clara, tenho medo daquele velho. Você não tem?

CLARA: vamos por partes. Reflita comigo. Esperar que seus pais - ou, no meu caso, que minha avó - permitam a nossa visita ao farol é causa perdida, concorda? Quanto ao seu irmão, ah, esse sequer irei considerar, já que é um frangote chatonildo a quem nada devemos. Assim como aos outros meninos, também a ele enganaremos com facilidade. Basta que façamos a nossa aventura na hora do jogo de futebol, quando nem aos gritos dos pais eles ouvem. E quanto ao dito velho, bom, só podemos realmente temê-lo se tivermos a coragem de conhecê-lo de perto e assim comprovarmos se ele é ou não a personificação do capeta.

LETÍCIA: personificação do capeta? Vixe! Então você acha mesmo que ele é um demônio?

CLARA: eu não acho nada sua abestada! Deixe de agonia! Ouvi isso de Dona Carmem logo quando a ela indaguei sobre o farol e o tal do velho. Mas entendi que esta visão dela se deve a sua religião, só por isso. Ela crê fervorosamente nos seus orixás e nas misteriosas mandingas. Eu respeito muito a Dona Carmem, porém é outra criatura medrosa igual a você!

LETÍCIA: Ave Maria! Essa nossa conversa está ficando assustadora. Acho melhor a gente esquecer esse plano maluco. Tô fora!

CLARA: então irei só. Fique aí com a sua frouxidão.

LETÍCIA: e terá coragem de ir só? Tá doida?

CLARA: e você ainda duvida? Já que não posso contar com quem tem dito todo dia ser minha fiel amiga, irei só. Como sempre repete minha querida e sábia avó: “antes só do que mal acompanhada”.

LETÍCIA: amiga sua eu sou, mas não tenho tendências suicidas! E saiba que não sou uma má companhia. Aconselho a desistir dessa aventura. Pense melhor, Clara, e depois conversaremos sobre o assunto, certo?

O “certo” com que Clara se livrou da amiga Letícia denunciava qualquer coisa menos uma resposta condescendente. Cada qual tomou o caminho de casa e ela, fitando ao farol de seus desejos, disse em voz baixa apenas para si: aguarde-me “Seu” misterioso guia dos navegantes perdidos! Amanhã mesmo irei inspecioná-lo!

Letícia pouco dormiu naquela noite, invadida por dúvidas cruciantes. Revelaria aos pais a proposta de Clara? Ou apenas contaria a alguma amiga que lhe fosse confiável, desejando, com tal atitude, ter uma posição mais balizada sobre a temerosa aventura? Ou, quem sabe ainda, ignorando ao seu medo e as conseqüências possivelmente desastrosas da ousada empreitada, iria com a nova e corajosa amiga desvendar os segredos do farol e de seu temido zelador? Com as mesmas dúvidas amanheceu, passaria, também, boa parte do dia e, já cansada de tanto refletir, foi procurar, no final da tarde, quando os meninos batiam o seu inadiável “baba” nas areias da praia, a Clara em sua casa. Para seu constrangimento e desespero, Dona Júlia estranhou sua procura, já que a neta havia justamente saído de casa para visitá-la.

Arranjou a primeira desculpa que conseguiu e voltou, em desabalada carreira, para sua casa e lá ficou sabendo que ninguém havia lhe procurado. O seu primeiro gesto foi o de correr para a praia, lado oposto ao que acontecia o dito “baba” dos meninos, e fitar toda a trilha do farol, na vã esperança de vislumbrar a silhueta da amiga a traçar o caminho de sua provável desventura. Apertou seus olhinhos e nada viu. Nenhum sinal de Clara. Sentiu angustiante aperto no coração. Retomou o caminho de casa e lamentou a sua falta de solidariedade para com sua nova companheira. Em silêncio foi para o quarto e rezou. Cansada, enfim adormeceu.

Clara, em razão de seu incontrolável desejo e proeminente coragem, tomara o caminho do farol e, logo que neste chegou, sentiu o clima de mistério que o envolvia. Ali o vento ecoava seus uivos assustadores, como se o farol fosse o único obstáculo a combatê-lo naquelas esquecidas paragens. Completava a sinistra orquestra os silvos das garças que quase planavam nas misteriosas águas e o estrondo das ondas violentamente arremessadas nas imensas pedras ali postadas, configurando uma defensa intransponível para a vetusta e cilíndrica edificação. De pé, bem em frente ao farol, perscrutando o quanto pode os seus arredores, ingenuamente chamou pelo “Véio Sombra”. Nenhuma resposta. Tendo repetido o seu chamado cinco vezes, impaciente aproximou-se da entrada do farol, onde uma grade corroída pelos ares salinos estava entrelaçada ao meio por uma grossa e não menos enferrujada corrente.

Bisbilhotando o que lhe foi permitido, pois enfiara a cabeça por entre as grades, esperou seus olhos acostumarem à escuridão do interior do farol, novamente chamou pelo velho e, tal como antes, nenhuma voz de dentro lhe atendeu. Apenas ouviu o eco de sua própria voz perdendo-se no vazio. Um pequeno lagarto lhe assustou correndo bem ao lado de seus pés, assustado, também, com a sua presença naquela construção pouco visitada. Tendo, ainda, sacudido o pesado portão do farol com a intenção de abri-lo, sem êxito afastou-se do prédio, mirou seu olhar tristonho no topo da edificação e, finalmente, desistiu de adentrar ao farol de seus desejos. Dali saiu prometendo retornar em breve. Mas teve a nítida sensação de estar sendo vigiada lá de cima pelo esquivo residente. Sentiu estranho calafrio e escafedeu-se.

Ao chegar à casa de Letícia e logo sabendo que a amiga ainda dormia, Clara correu e mergulhou na praia, a tempo de testemunhar uma briga corriqueira entre dois de seus amigos, relativa à partida jogada. Esquivou-se para não ser vista e tomou o caminho de casa. Sem contar sua aventura à Dona Júlia, tomou banho de água doce, comeu frutas, pegou água na moringa e disse para avó que dormiria cedo. Fechou a porta de seu quarto e refugiou-se. Desejava reorganizar suas idéias. Deitada na cama passou a relembrar de cada detalhe do farol e, em especial, da sensação que sentiu ao sair. Quando nisso pensava, adormeceu. Ao despertar na manhã seguinte, lembrou-se do pesadelo que tivera, no qual, numa noite de lua cheia, tendo penetrado no farol, se deparava, para sua tristeza, com o velho estirado numa estropiada cadeira de balanço, morto em sua morada ali rudemente improvisada no topo da histórica construção. Tendo se aproximado do defunto percebera, horrorizada, que a face era a de seu falecido e querido pai e então gritara com a máxima força de seus pulmões. O cansaço permitiu-lhe dar seqüência ao sono.

Logo cedo, quando ainda tomava o seu café da manhã, Clara recebeu a visita de Letícia. Após narrar em voz baixa e detalhadamente tanto a sua visita mal sucedida ao farol, quando o infeliz pesadelo, a amiga que já andava inculcada com toda aquela aventura descabida, renovou seus conselhos para que Clara dela definitivamente desistisse. Esta, como era de se esperar, deu a sua firme resposta.

CLARA: nem pensar. Sobretudo agora! Desconfio, minha querida “frouxilda”, de que o velho precisa de ajuda. Ficou me olhando lá de cima. E depois o pesadelo que tive de madrugada foi como um aviso para mim. Amanhã retornarei ao farol. Já decidi.

LETÍCIA: o que posso fazer para ajudá-la? Quero dizer, para convencê-la de que não deve mais voltar àquele farol?

CLARA: se quer mesmo ajudar não me peça para não ir. E mantenha seu bico calado!

Duda, apesar de sempre vigilante aos atos de sua irmã Letícia, era um rapazola interessante, inteligente e expansivo. Completara dezessete anos. Gostava, inclusive, de poesias. Quando das festas familiares ou dos poucos eventos da comunidade, sempre era escalado para recitar versos, o que fazia com bastante dramaticidade, sendo por tal desempenho sempre elogiado. Desde a primeira vez em que pôs os olhos em Clara ele sentiu o descompasso nos batimentos do seu coração, seduzido não somente pela beleza da adolescente, mas, em especial, pela forte personalidade da nova moradora do Funil. “Não havia menina como Clara no Povoado do Funil”, assim ele julgava. A amizade encetada pelas meninas, Clara e Letícia, contribuiu para que ele ficasse mais tempo próximo de seu objeto de desejo. Enquanto Letícia continuaria a pensar que a presença mais efetiva de seu irmão ao seu lado se dava a mando de sua protetora mãe – o que muito lhe aborrecia -, na real Duda tinha novas intenções e planos arquitetados em seus pensamentos.

Foi, portanto, este seu interesse por Clara que propiciaria à Duda escutar, escondido atrás da porta do quarto de Letícia, a última discussão que sua irmã envidava com a nova amiga. Cuidadoso, ainda que também temesse escarafunchar o maldito farol, plantou-se, na tarde seguinte, na extremidade da praia, recolhido atrás de uma inválida embarcação, e aguardou pacientemente pela passagem de Clara. Assim, quando Clara irrompeu a sua correria pela praia, em demanda da ponta da ilha, onde o farol se encontrava, Duda, com o necessário cuidado, correndo como um gato tinhoso, seguiu-lhe a trilha.

Tendo chegado ao farol, Clara dirigiu-se ao velho portão e logo chamou pelo Véio Sombra. Novamente não ouviu resposta. Sem tanta paciência, afastou-se da construção e começou seu confiante discurso.

CLARA: Véio Sombra! Véio Sombra! Sei que está aí. Não precisa temer. Sou alguém que apenas deseja conhecê-lo melhor e a este belo farol. Também não tenho medo de você. Vamos! Abra o farol para que eu possa entrar. Véio Sombra! Véio Sombra!

Um silêncio sepulcral dominava o ambiente. Novamente o vento sinalizou sua presença voraz. Como a maré era vazante, poucas ondas, naquela oportunidade, quebravam nas pedras.

CLARA: Véio Sombra! Já sabe que ontem eu estive aqui e que virei quantas vezes me for possível até que me atenda, que acredite que sou de paz. Vamos Véio Sombra! Abra este portão! Véio Sombra! O que uma menina como eu poderá lhe causar de mau, ou ser temida? Véio Sombra!

O susto de Clara foi mesmo inenarrável quando, ao invés de ser atendida pelo velho morador, ela escutaria uma voz repreensiva as suas costas.

DUDA: Clara! O que está fazendo? Você é muito corajosa para vir aqui sozinha. Perdeu o juízo? Não deveria ter vindo aqui!

CLARA: quer me matar de susto seu garoto enxerido? Eu é que lhe pergunto! O que você está fazendo aqui? Acaso agora também é meu vigilante? O que a minha avó lhe prometeu em troca?

DUDA: não se trata disso, Clara. Apenas fiquei preocupado quando soube que viria neste local proibido. É muito perigoso, ainda mais para uma menina como você, tão nova na ilha e que não conhece os mistérios que envolvem este farol mal assombrado.

CLARA: que decepção! Sua irmã, além de não ser nada solidária e demasiadamente medrosa, também tem o mau costume de fofocar. Amigas assim é melhor mesmo ter inimigas declaradas!

DUDA: não Clara, não seja injusta com minha irmã. Ela nada me disse. Vocês ontem discutiram o assunto e em razão do tom alto da conversa pude ouvir tudo. Preferi não me meter na discussão de vocês e hoje resolvi segui-la para protegê-la de qualquer eventualidade. Assim como eu, Letícia gosta muito de você e apenas estamos preocupados.

CLARA: pronto! Mais um “protetor-mor” das indefesas meninas do Funil! Já não bastam pais, mães, avós, padres, perus, bajuladores, dedos-duros? E depois, meu caro Duda, quem lhe pediu proteção?

DUDA: ninguém me pediu. E muito menos você. Mas sempre aprendi que esses gestos a gente faz naturalmente quando a pessoa a ser protegida necessita e, sobretudo, merece. Mas percebo que neste caso não deveria mesmo ter me preocupado. Desculpe-me Clara! Perdoe-me! Fique em paz e que Deus lhe proteja. Afinal Ele é sempre mais poderoso do que qualquer um de nós, que somos suas criaturas, concorda? Tô indo.

Duda, cabisbaixo e arrependido, iniciou lentamente o seu caminho de volta, quando do topo do farol, aos dois surpreendendo, uma voz rouca, entoada com gravidade, asseverou.
VÉIO SOMBRA: vá e leve sua amiga! E não ousem mais voltar aqui! Vamos! Deixem-me em paz! Vamos! Saiam daqui!

Quase imperceptível, o velho se esquivou e retornou para o recôndito de sua tosca moradia.

Duda direcionou um último olhar cobrador para Clara que, ainda tocada pelas palavras que ouvira em resposta a sua agressiva reação e, da mesma forma, assustada com a recepção nada amistosa do velho, aquiesceu e também do farol se afastou, juntando-se à Duda na caminhada de volta.

Somente quando eles chegaram às proximidades da pracinha do povoado, o nervoso mutismo foi quebrado pela menina afoita.

CLARA: quem, na verdade, deve desculpas sou eu. Não deveria tê-lo tratado daquela maneira. Culpa desse meu jeito meio estabanado. Com o tempo, se assim quiser ou tiver paciência, vai se acostumar comigo.

DUDA: não carece se desculpar. Tudo bem.

CLARA: então amigos?

DUDA: sim. Amigos.

Após apertarem as mãos e trocarem tímidos sorrisos, cada qual tomou o seu caminho de casa. Duda, mais do que pensara, percebeu a intensidade de sua paixão por aquela criatura despojada. E sentiu que este despojamento de Clara, apesar de contrariá-lo, era, na verdade, o que mais lhe seduzia. Até chegar a sua casa elevou a mão direita com a qual respondera ao cumprimento por várias vezes ao nariz, inebriando-se com os resquícios do perfume que Clara nela deixara.

A adolescente desinibida, por sua vez, após friamente refletir sobre os acontecimentos daquela tarde, passou a ter de Duda uma imagem diferente do que lhe pintara a sua amiga. Inteligente e sensível, Clara também percebeu que um “algo mais” se expressara na conduta daquele garoto educado em relação a sua pessoa. Talvez esse “algo mais”, se acaso confirmado, seria, sem dúvida, um bom motivo para conquistar mais facilmente a solidariedade de Duda em relação à realização de seu persistente desejo de conhecer o misterioso farol e desvendar os segredos do seu agressivo residente. Tudo lhe pareceu caminhar para o êxito de sua desejada empreitada.

Dois dias após a frustrada visita ao farol, num domingo ensolarado, os pais de Duda e Letícia resolveram realizar um passeio de barco pela orla da ilha, visitando as praias dos povoados de Sossego e Pontal. Os meninos, cada qual movido pelo seu interesse particular, convidaram a Clara, alegando aos pais que a menina recém-chegada ainda não conhecia o restante da ilha. Solicitação aceita, Clara embarcou com a família de seus novos amigos para um passeio inesquecível.

As águas da praia do Povoado de Pontal eram mornas e transparentes, propiciando um banho relaxante. Quase sem ondas e pontuadas de piscinas naturais, ali as pessoas mergulhavam e esqueciam as horas. A visita seguinte também encantaria a Clara. O Povoado do Sossego realmente fazia jus ao nome de batismo. Nele almoçaram sob o frondoso coqueiral, acolhidos por um silêncio tranqüilizador, somente alterado pelas vagas que carinhosamente batiam na beira da praia. Se de fato existia paraíso, provavelmente o Povoado do Sossego dele era um descendente natural.

O passeio proporcionou uma maior e mais prazerosa proximidade de Clara em relação à Duda, gerando desconfianças em Letícia. É que os agora novos amigos, pelo fato de conversarem longamente sobre vários assuntos e até sobre gostos particulares, causaram surpresa e ciúmes a Letícia, que se sentiu, no mínimo, desprezada. E quando o assunto foi o farol da ilha, Clara e Duda tiveram o cuidado de baixar o tom de suas falas, pois que ambos conceberam as dificuldades para contar com o apoio ou a participação de Letícia. Mais do que isso, temiam que ela, premida pelo medo ou por sua renitente discordância, revelasse o segredo para os pais.

Duda, após aquele dadivoso domingo, se transformaria. Não eram mais os “babas” na praia e nem os “garrafões” na pracinha que lhe roubavam o tempo. Passou a dar desculpas aos amigos para explicar suas recentes ausências e sempre arranjava outras para justificar a sua presença junto a Clara, Letícia e as demais amigas de sua irmã. Tal conduta não apenas lhe trazia gozações desagradáveis de seus amigos, como, também, suspeitas cada vez mais passíveis de se transformarem em certezas da parte da irmã ciumenta. Como atestava o ditado popular: “a paixão cega”.

Num daqueles majestosos finais de tarde em que o sol produz o seu singular espetáculo, despedindo-se poeticamente na linha imaginária do horizonte, Duda, encorajado pelo deslumbrante visual, confessou seus sentimentos para Clara. Após breve silêncio, a menina sorriu e, com a desinibição que lhe era peculiar, também revelou os seus. Beijaram-se. Teve início, ali, um belo e dramático relacionamento afetivo, uma paixão comovente, pois que seria abrupta e precocemente interrompida pela inexplicável fatalidade da vida. E neste mesmo entardecer o novo casal combinou para o final da tarde seguinte uma nova incursão ao farol, não sem antes dar conhecimento à Letícia das duas decisões: a do namoro iniciado e a de mais uma vez escarafunchar o misterioso ícone da ilha.

Letícia - como fora previsto por Duda e Clara - negou-se novamente a participar da empreitada, mas aos dois jurou que nada comentaria em casa e tampouco falaria para as outras amigas da turma. Apenas prometeu rezar rogando proteção a Deus para ambos. A surpresa do casal deveu-se ao silêncio de Letícia em relação à notícia do namoro, o que até despertou breve preocupação. Todavia, seduzidos para visitarem ao farol, logo esqueceram a reação silenciosa de Letícia.

Diferentemente dos últimos dias, um céu cinzento, bastante carregado de densas nuvens, abraçou praticamente a todo o Povoado do Funil. Um vento anunciador de chuva já sacudia as embarcações no ancoradouro, o que antecipou, inclusive, o retorno dos pescadores e fez cair às mangas maduras, logo recolhidas do chão pelos moleques que brincavam na rua. Este cenário contribuiu para a aflição de Letícia, pois, apesar do tempo, Duda e Clara teimosamente cumpriram com o plano estipulado.

O jovem casal apaixonado, tendo chegado ao farol, foi colhido pelo aguaceiro. Apenas a imensa parede da edificação serviu-lhes de incompetente amparo, eis porque suas roupas logo se ensoparam, causando-lhes insuportável frio. Juntos gritaram o nome do velho. Somente quando roncou o primeiro e forte trovão, cujo raio havia clareado artificialmente as águas da baía, Duda e Clara temeram por sua segurança. Sabiam que não poderiam retornar para casa, pois a probabilidade de serem atingidos por um raio era real. O desespero tomaria conta de ambos, pois, em razão da chuva e dos ventos, a viração da maré se dava mais violenta e o único e estreito caminho pelo qual ali chegaram, circundando as pedras, já fora totalmente coberto pelas águas da enchente. O que fazer?

Duda, abraçando e rogando calma a sua namorada, ali pela primeira vez esboçando medo, tentou tranqüilizá-la, sugerindo uma breve oração. Ambos contritamente rezaram. A chuva não dava trégua e as ondas cada vez mais fortemente resvalavam nas pedras, espirrando suas espumas fantásticas a alturas inconcebíveis. Dava-se, de fato, um tenebroso espetáculo, ainda mais assustador pela rápida chegada da noite.

Foi justamente com a chegada da precoce escuridão que Duda e Clara experimentaram um susto maior: o Véio Sombra, tendo silenciosamente aberto o gasto portão de sua fortaleza, com a mesmíssima gravidade de sua voz, secamente disse:

VÉIO SOMBRA: isto nada mais é do que um merecido castigo da natureza dado a fedelhos tão teimosos como vocês. Vamos! Entrem antes que eu desista dessa minha rara atitude caridosa!

Os olhos esbugalharam em suas faces juvenis e, como não tinham mesmo alternativa, trêmulos de frio e medo, adentraram ao farol. Mantiveram-se de mãos atreladas e num penoso silêncio. O velho, percebendo a situação, entrelaçou a corrente no gasto portão – assustando mais ainda aos meninos – e os indicou a subida. Após trocarem seus olhares de dúvida e notando que o velho já se enveredava pela longa e curvilínea escada, novos trovões roncando na baía, Duda e Clara acompanharam aquela estranha criatura. Neste exato momento, um grande clarão iluminou ao interior do farol, logo secundado por um novo e violento estrondo, sinalizando a proximidade perigosa das nuvens que encobriam os céus da ilha. Grande pavor ali foi sentido.

Ao chegarem com pouco ar ao topo do farol, o velho apontou uma esteira para que ambos sentassem e tomou seu lugar bem embaixo do embaçado vitral da antiga construção. Já sentada na esteira, Clara sentiu forte calafrio ao visualizar a alquebrada cadeira de balanço em que se acomodara o velho, a mesma que lhe aparecera no pesadelo. Duda, percebendo a aflição de Clara, novamente pegou em suas mãos, que estavam frias e trêmulas.

O velho, após acender a um charuto mal cheiroso, olhou para os céus em desatino e calmamente relatou:

VÉIO SOMBRA: foi numa noite tenebrosa igual a esta que aqui aportei pela primeira vez. Noite de sofrimentos e de ranger de dentes. Uma noite de feroz tempestade. Uma noite de castigo!

Ao dizer mais incisivamente esta última frase, fez questão de arregalar seus olhos, direcionando o olhar para o jovem casal invasor. E o silêncio persistiu por alguns minutos, durante os quais novas rajadas foram escutadas, só que os barulhos dos trovões sinalizaram menor incidência.

VÉIO SOMBRA: surpreende-me o medo de vocês. Perderam até a voz! Pareciam-me tão corajosos! O que então desejavam quando aqui estiveram e por que, sob um temporal dessa natureza, aqui retornaram! Além de mudos parecem que são também surdos, pois avisei que não viessem mais aqui. Já que teimaram, o que realmente desejam? E você, minha jovem, que tanta coragem demonstrou outro dia? Vamos! Diferente do que devem imaginar, não disponho de tanto tempo.

Duda, enquanto o velho pronunciava seu provocante questionamento, percebeu que aquela moradia tinha dois compartimentos, zelosamente separados por uma improvisada divisória de madeira. Apurando mais a sua curiosidade, vislumbrou a ponta de uma carcomida estante em que vários livros se amontoavam, carentes de urgente arrumação. Quando se dedicava a identificar algum título, Clara finalmente abriu a boca.

CLARA: desculpe, Senhor, pelo aborrecimento. Não queríamos incomodar.

VÉIO SOMBRA: já aborreceram e incomodam. E tenho plena certeza que os seus pais também ficarão aborrecidos quando souberem dessa teimosia. Diante do que lá fora acontece, também devem estar bastante preocupados. Mas o que querem afinal?

DUDA: também peço desculpas, Senhor. Na verdade, eu sempre tive muita curiosidade de entrar aqui neste farol. E ele é mais ou menos como eu pensava, apenas não imaginava que uma pessoa poderia nele viver normalmente, como agora comprovo ser isto possível. O Senhor também gosta de ler?

Carregando novamente o seu semblante, que havia relaxado, o velho conferiu a abertura de sua divisória e entendeu o porquê daquela pergunta do garoto observador.

VÉIO SOMBRA: qual a serventia desta pergunta? Quem aqui questiona sou eu. E saiba que curiosidade tem limite e sendo esta indevida pode causar danos irreparáveis.

DUDA: perdoe-me Senhor. É que vi alguns livros ali na sua estante e, como eu também gosto de ler, especialmente contos e poemas, perguntei. Mas não tive qualquer indevida intenção. Desculpe-me!

O velho, após a justificativa dada pelo garoto, distraiu-se olhando para o horizonte, como se aquele assunto propiciasse recordações de algo relevante, do qual sentisse saudade, pois seus olhos brilharam transformando radicalmente a sua carregada e costumeira expressão facial. Clara aproveitou aquele raro momento de mansidão do estranho inquilino do farol.

CLARA: compreenda, prezado Senhor, que o seu modo de vida, quer dizer, o fato de residir aqui, sozinho e evitando o convívio normal com as pessoas, nos cause estranheza e, por conseguinte, curiosidade. E não somente a nós dois! Some-se a isso a vontade que muitos têm de melhor conhecer este velho farol, sem dúvida uma construção belíssima, tão antiga e, por isso mesmo, deve guardar instigantes histórias dessa não menos bela ilha.

O palavreado competente de Clara surpreendeu ao velho, nele suscitando o interesse de saber mais detalhadamente quem era aquela inteligente, bonita e corajosa menina.

VÉIO SOMBRA: como é mesmo o seu nome, filha?

CLARA: Maria Clara Requião Batista. Cheguei recentemente à ilha.

A expressão de surpresa desenhada na face enrugada do velho trouxe de volta os receios aos dois meninos. Sem dar qualquer explicação, o desconhecido morador levantou-se abruptamente da cadeira e, aproveitando-se da estiagem da chuva, desconversou deseducadamente.

VÉIO SOMBRA: bom, é hora de terminar esse converseiro, o qual, aliás, jamais deveria ter começado. A chuva já passou e vocês devem logo retornar para as suas casas. Pela última vez os alertarei: não mais me apareçam por aqui. Não são meus convidados e não terão simpática acolhida. Vamos! Desçam comigo! Hora de partir!

Vociferou tais palavras e desceu apressadamente a escada, apesar da idade que aparentava ter. Duda e Clara, surpresos com a interrupção daquele encontro tão desejado, obedeceram aos mandamentos do velho, mas, quando atravessavam ao enferrujado portão, Clara, não se conformando com a postura deseducada do morador, arriscou:

CLARA: o que foi, Senhor, que tanto lhe desagradou? Dissemos algo que acaso não tenha apreciado? Não contaremos a ninguém dessa nossa visita ao farol e muito menos sobre a conversa que tivemos com o Senhor.

VÉIO SOMBRA: vamos! Desapareçam daqui! Principalmente a senhorita! É muito insistente em seus atos! Vamos! Saiam! Deixem-me em paz!

O velho fechou violentamente o portão, entrelaçou a corrente e subiu a escada sem sequer olhar para trás. Os meninos, novamente assustados, se entreolharam sem nada entender e tomaram o caminho de volta. Ainda ventava muito e o ar frio advindo do mar causava arrepios.

Nas proximidades do povoado notaram que os pais de Duda e Letícia, Dona Júlia amparada pela cozinheira Carmem, além de alguns meninos e o Intendente da ilha, Doutor Juvenal Pereira, estavam reunidos no cais. Teriam de dar uma boa desculpa para justificarem as suas ausências. Letícia socializara o segredo? Grande possibilidade. Por isto resolveram primeiramente escutar as incômodas cobranças de todos para ganharem algum tempo e, assim, apresentarem a resposta menos prejudicial.

Acolhidos pelos abraços de seus respectivos e aflitos familiares, e logo por todos questionados, Duda e Clara, ao perceberem um breve sinal negativo de Letícia, se tranqüilizaram. Clara, então, deu a sua versão “arrependida” e fantasiosa aos ansiosos ouvintes.

CLARA: primeiramente, peço perdão a todos vocês. A culpa foi toda minha. Ele apenas foi um bom companheiro.

Duda, diante da impensável segurança de Clara, atinou ser mais inteligente naquele momento permanecer de bico calado.

INTENDENTE JUVENAL: o que se passou com vocês bonita menina?

CLARA: por pura curiosidade - até porque vocês sabem que ainda não conheço a ilha na sua totalidade - caminhei para as bandas do velho pontilhão, com o interesse de não somente conhecê-lo de perto, mas, igualmente, para catar os tão elogiados araçás que muitos de vocês aqui da ilha não cansam de a eles se reportar como deliciosamente doces. Na passagem, encontrei Duda que me advertiu ser um local perigoso, ainda mais quando o céu prometia chuva forte, como, de fato, os ventos já anunciavam a tempestade no horizonte. No entanto, fiz ouvido de mercador, despedi-me dele e segui meu caminho.

Letícia, querendo ajudar na mirabolante história, ralhou com o irmão:

LETÍCIA: e você seu frangote! Por que não insistiu com ela para desistir de seu passeio, ou então por que não a acompanhou?

Duda, ainda ofuscado pela criatividade de sua namorada, permaneceu em silêncio e expressou uma cara de desentendido.

CLARA: calma Letícia. Ao seu prestimoso irmão devo o meu retorno.

DONA JÚLIA: então continue minha netinha. E aí, o que fez?

CLARA: realmente deveria ter considerado os conselhos de Duda. Após atravessar o precário pontilhão, sob o açoite dos ventos, resolvi logo retirar alguns araçás para não perder a viagem. Nesse exato momento a chuvarada caiu sobre mim e testemunhei um raio clarear toda a vegetação. Fiquei atordoada, porque aprendi com meu saudoso pai que nunca deveria ficar próxima de árvores quando houvesse raios. Sem atinar direito qual direção tomar, agoniada com o estrondo dos trovões, visualizei um pouco distante umas ruínas e para elas corri, escapando, assim, da possibilidade de ser atingida pela carga fatal de um raio.

INTENDENTE JUVENAL: conduta inteligente querida menina, apesar da indevida visita àquelas ruínas. Mas, diante da gravidade da situação, foi mesmo uma acertada opção.

LETÍCIA: sim, Clara! E o que se deu depois?

CLARA: tentei me acalmar, pois daquelas ruínas exalava um fedor medonho de enxofre, de coisa ruim. Também temi pela sua gasta estrutura diante daquele aguaceiro violento. Quando finalmente a chuva amenizou, escutei, feliz, a voz de Duda clamando pelo meu nome. Saí das ruínas e respondi ao seu chamado. Ele já havia atravessado ao pontilhão e, após novamente me repreender, guiou-me de volta para cá. Reconheço que não foi uma boa experiência. Perdoe-me vovó! E uma vez mais quero lhe agradecer Duda. Portou-se como um prestativo cavalheiro.

Os pais de Duda cumprimentaram o filho e educadamente se despediram de todos os presentes, não sem antes relembrarem aos dois meninos, agora livres da forte tormenta, que deveriam, quando deitassem, renovar os agradecimentos a Deus por estarem sãos e salvos. Todos concordaram e silenciosamente trilharam o caminho de suas casas.

Além de rezar, Clara demoraria a fechar seus olhos, pois que a intempestiva reação do Véio Sombra não lhe saía da mente. Afinal, o que causara aquela repentina mudança de humor no velho morador do farol? Aos poucos foi reconstituindo os diálogos do Véio Sombra com Duda e os que ele tivera com ela própria. Então lembrou, com exatidão, que a inesperada mudança de comportamento se dera logo após ela ter pronunciado o seu nome. Intrigada, indagou-se: qual a relação dessa simples revelação com a indignada reação do velho?

No dia seguinte, após ajudar a Dona Júlia nas costuras, saiu de casa prometendo a avó que apenas visitaria a Letícia e não demoraria. Banhou-se, beijou a testa de Dona Júlia e se foi.

Na verdade, Clara queria mesmo era conversar com Duda sobre a desconfiança que lhe atormentava os pensamentos, alusivas à manifestação de seu nome seguida da reação do Véio Sombra. Precisava avaliar com mais serenidade o que se dera. E essa desconfiança evidentemente contribuiu para aumentar a sua curiosidade acerca daquele cidadão solitário. Duda e Letícia reagiram negativamente às elucubrações de Clara, ressaltando que ela mal chegara à ilha, vinda de longe, das bandas de Sergipe, o que tornava mais difícil qualquer relação da vida do velho com a sua existência. Clara insistiu e até relembrou do pesadelo, interpretando-o como um “aviso” ou um “chamamento” a ela endereçado para talvez procurar aquela criatura misteriosa do farol. Os dois amigos riram dessa justificativa, o que, de certa forma, lhe aborreceu. Clara, então, fez a sua consulta a Duda, demonstrando impaciência.

CLARA: voltará ou não comigo ao farol?

Duda, fitando à Letícia com expressão de dúvida ou como se rogasse ajuda da irmã para melhor responder a sua namorada, balbuciou algumas palavras fugidias, sem muito sentido.

DUDA: parece-me que o tempo ainda oferece perigos para qualquer investida.

CLARA: não lhe indaguei sobre as condições do tempo! Perguntei se me acompanhará ou não! E não tenha receio de responder negativamente.

LETÍCIA: calma amiga. Esta sua ansiedade ainda lhe trará problemas. Não percebeu que realmente não devemos incomodar ao Véio Sombra? Você própria tem confessado a sua estranheza diante daquela reação agressiva só porque ouviu seu nome. Na verdade, não podemos sequer prever o que ele é capaz de fazer! Por que não esquecemos o farol, o velho e cuidamos das nossas vidas?

CLARA: tudo bem! Já compreendi. Penso que muito mais do que ao velho, tenho incomodado a vocês. Mas fiquem tranqüilos. A partir de agora se sintam descompromissados com o assunto e comigo. Sem mais problemas! Tô indo para minha casa. Até breve!

Com o semblante visivelmente entristecido, Clara abriu a porta e ganhou a rua. Diferente do que anunciara, ao invés de sua casa, caminhou na direção da igreja matriz e nela penetrou silenciosamente. Os irmãos, absortos, fitaram à amiga até o momento em que sua imagem desapareceu no templo. Duda recolheu-se em seu quarto e até temeu pelo fim do recente namoro. Arrependeu-se de ter deixado Clara evadir-se sem sequer trocarem um mínimo carinho.

Dois dias após aquela separação, Duda, que já desconfiava das intenções de Clara, redobrou a sua vigilância, atitude que favoreceria um novo flagrante à fuga de Clara do povoado para envidar uma nova – e agora derradeira – visita ao velho do farol. E tal qual se dera quando da última aventura, também chovia na ilha no momento em que Duda percebeu a silhueta da namorada entrecortando os barcos recolhidos na areia e tomar a direção do misterioso monumento. Não titubeou um instante sequer e a seguiu com o mesmo passo dos ardilosos felinos quando no exercício de suas caças.

Desta vez a recepção à insistente menina dar-se-ía na praia, já que o velho acabara de ancorar a sua velha canoa e cuidava dos seus apetrechos de pescaria, naturalmente apressado em face da chuva que já se precipitava. Vendo a menina se aproximar, imediatamente exibiu seu semblante enraivecido e vociferou sem cerimônias:

VÉIO SOMBRA: a sua insistência me aborrece e temo pela sua vida. Saia daqui antes que eu cometa um desatino, menina!

CLARA: por que a minha presença tanto lhe incomoda? O que fiz de errado em relação ao Senhor? Tenha paciência comigo e não me julgue precipitadamente!

O velho não respondeu, virou-se abruptamente e resolveu empurrar sua canoa de volta para as águas revoltas, assustando a Clara.

CLARA: não faça isso, Véio Sombra. Não precisa voltar para o mar. Sabe do perigo de navegar sob esta chuva que promete piorar. Por favor! Só quero conversar.

Tendo alcançado a beira da praia e a canoa penetrado no mar, antes de começar a remá-la, Véio Sombra reclamou com a menina.

VÉIO SOMBRA: este não é o meu nome. Se você daqui não sai, sairei eu.

CLARA: já lhe disse, Senhor, não carece sair neste mar revolto. Perdoe-me por chamá-lo dessa forma, pois foi assim que aprendi lá no povoado. Então me diga qual é o seu verdadeiro nome e o chamarei com muito prazer. Por favor, escute-me!

VEÍO SOMBRA: vai se arrepender de ter voltado aqui.

Disse isso, pegou do remo e deu partida a canoa, mas logo seria colhido por uma enorme e violenta onda. A rude embarcação não suportou ao impacto e virou, atirando-o nas águas frias e agitadas. Clara, em face do velho não ter emergido da queda, desesperada e sem atinar no que faria, mergulhou no mar e percebeu manchas de sangue junto à embarcação avariada. Supôs acertadamente que o velho batera a cabeça, perdera os sentidos e, por isso, afogava-se.

Duda, que a tudo percebera à longa distância, escondido atrás das pedras, pois não queria ser notado por Clara, temendo, talvez, nova repulsa de sua amada, correu desatinado para a praia e igualmente mergulhou no mar. Agoniado, escutava aos gritos sufocados de Clara. Quando enfim se achegou da namorada, em meio ao furor das ondas e sob forte temporal, pode testemunhar seu corpinho, atrelado ao do velho, já desfalecido e em movimento descendente, sucumbir para o fundo da baía, tendo a expressão de horror a lhe desfigurar a sua face juvenil. Jamais esqueceria essa triste imagem. Trauma que levaria muitos anos para se amenizar.

Dois pescadores que serenamente proseavam nas proximidades, recolhidos à casa de pesca no aguardo da estiagem, ao ouvirem os gritos alucinados de socorro emitidos por Duda, correram à praia e o resgataram com imensa dificuldade. Foram necessárias várias massagens em seu peito e o recurso indispensável da respiração boca-a-boca. Ainda trêmulo e desnorteado, Duda apenas balbuciava o nome de Clara, o que bastou para o entendimento dos pescadores. Até porque também, trazida pela força das águas, a canoa do velho deu na beira da praia, sendo logo por eles reconhecida e recolhida para a areia.

Desnecessário comentar o sofrimento de Dona Júlia ao saber daquele drástico acontecimento. Inconformada com a perda da neta, a costureira careceu de internamento hospitalar, tendo sido transferida para a capital da Província, onde, transcorridos tão somente quinze dias do duplo afogamento, também ela viria a falecer, acometida de colapso cardíaco. Foram dias de respeitoso luto no Povoado do Funil. Missas foram encomendadas pelas almas da avó e de sua querida netinha. Para além de toda a tristeza, alguns moradores mais curiosos tentavam entender o que acontecera de fato naquele final de tarde tenebroso. Os corpos de Clara e do Véio Sombra, como muitos pescadores previram, somente boiaram no dia seguinte na praia do Sossego, causando indecifrável consternação, especialmente, é lógico, pelo falecimento de Clara. Acreditou-se, durante muito tempo, que o velho misterioso havia se precipitado propositadamente no mar e, em razão de suas esquisitices ou da probabilidade de Clara ter descoberto alguma coisa grave sobre o seu passado desconhecido, levara com ele a ingênua e indefesa adolescente.

A verdadeira identidade do Véio Sombra apenas seria descoberta quando Duda, passado um mês da perda de sua amada, guiado pela saudade dolorosa e, da mesma forma, desejando homenagear a Clara com a esperança de, visitando ao farol, desnudar a vida daquele infeliz sujeito, numa noite de lua cheia resolveu perscrutar a moradia do falecido.

Sentiu calafrios e a vontade de desistir logo que pisou no topo do farol e respirou a umidade fúnebre ali reinante. Precisou acender ao candeeiro, o que lhe causou dificuldades. Transpondo a divisória improvisada do pobre ambiente, deparou-se, além da estante que já esperava visualizar, com uma velha mesa cheia de papéis rabiscados, amparados por pedras para se defenderem do vento, os quais ele entendeu serem rascunhos de uma longa carta. Assustou-se ao verificar que a missiva se destinava à Clara e estava datada coincidentemente com a mesma data do triste afogamento. Saiu do improvisado escritório e sentou-se na velha cadeira de balanço do velho. Com sofreguidão, leu o que estava escrito.


Farol da Ilha, 25 de janeiro de 1836.

Prezada Senhorita Clara

Tenho, há praticamente vinte anos, me refugiado de tudo e de todos neste insalubre e histórico farol. Creia que este modo de vida não foi livremente por mim escolhido e nem tampouco me agrada. Desde já saliento que a solidão tem algo de assustador e a cada dia triste e lentamente me rouba os últimos resquícios da minha frágil e conturbada existência. Apenas os peixes e os livros me são ditosos companheiros.

Entenderá que o seu surgimento nesta esquecida ilha resultará na mudança de minha vida solitária para outras distantes paragens, o que, em face da minha avançada idade e precária saúde, muito me amedronta. Mas não há outra solução. A seguir explicarei o que aqui já sinalizo.

Na verdade chamo-me João Crisóstomo de Almeida Salgado. Sou filho de um ilegítimo e forçoso cruzamento de uma ex-escrava com um feitor mestiço, naquele tempo um sujeito já oficialmente casado. Nasci, fui criado e penosamente rejeitado num rico engenho açucareiro, situado na vizinha capitania de Sergipe, do qual meu vergonhoso pai era o principal empregado, cujos serviços se resumiam a vigiar o árduo trabalho dos escravos nos canaviais e a castigá-los sem dó quando os mesmos cometiam a mínima falta. Para que perceba a perversidade desse feitor, infelizmente meu pai biológico, ele próprio castigou a minha mãe quando ela, desesperada pela indesejada gravidez – pois fora por ele estuprada -, buscou auxílio confiando o delicado assunto a sua patroa. Hoje me sinto próximo de empreender involuntariamente a minha derradeira despedida e até me assusto por ter alcançado os meus setenta e cinco anos. Talvez não mereça viver tanto tempo.

Saiba, menina Clara, que as mulheres daquele tempo – como, aliás, muitas ainda hoje assim o fazem única e exclusivamente por medo – sentiam-se obrigadas a relatar para seus autoritários esposos todos os assuntos e eventualidades que se davam debaixo do teto em que viviam. Terá no testemunho de sua dedicada avó a confirmação dessa dura obrigatoriedade do gênero feminino. Ao saber daquela gravidez, meu pai passou a ser chantageado cotidianamente pelo seu patrão, experimentando, além de uma carga exagerada de trabalho e responsabilidades, as mais humilhantes situações. Acaso fosse denunciado, responderia a processo cuja sentença certamente seria a perda de sua liberdade. Toda a sua ira e toda a sua obrigatória humilhação seriam carreadas para mim, portanto a infeliz criança nascida de uma relação indevida e ultrajante. Rejeitado e sendo fruto de barriga escrava, fui tratado como escravo e jamais reconhecido como filho de um truculento feitor. Meu pai e o filho do patrão tinham prazer em me castigar. Este segundo sujeito o fazia por ciúmes doentios da minha pessoa, já que era um rapazote franzino e de debilitada saúde. Seu cinismo e sarcasmo incomodavam a todos que dele se achegavam, não possuindo, desde os tempos de sua infeliz infância, amigos.

Somente aos onze anos, após tantos castigos injustos e de desempenhar penosamente serviços acima da minha capacidade física, seria salvo pelo padre Juliano, que sempre pernoitava na fazenda. Levou-me, no que pese o veemente protesto do patrão celerado, para a Vila de Nossa Senhora da Ajuda, justificando a carência de um ajudante tanto para as missas, quanto para a limpeza de sua igreja. Asseverava ao Senhor que trabalho não me faltaria em sua Paróquia. Na verdade, sendo um religioso observador e caridoso, desconfiava das maldades gratuitamente a mim dedicadas pelo filho do Senhor e, em especial, pelo feitor. Ao padre devo o gosto pela leitura e o aprendizado da escrita, o que aqui me favorece rabiscar essas palavras para você, revelando verdades que certamente levaria para o túmulo.

Em razão do violento tratamento que aquele Senhor desalmado dispensava aos seus sofridos escravos e, da mesma forma, das chantagens cada vez maiores impostas ao seu feitor, portanto ao meu pai, a sua rica e grandiosa propriedade vivia sob o espectro da desconfiança e do medo. Chegavam notícias de quando em vez sobre motins e rebeliões de negros no recôncavo da capitania e até mesmo de incursões mais ousadas de negros rebeldes nas ruas da Cidade da Bahia. Os velhos tropeiros, com muita perspicácia, repassavam tais informações, as quais, de certo modo, agitavam ainda mais a escravaria subjugada. Quando não sabíamos dessas revoltas através dos tropeiros, suspeitávamos de suas ocorrências, pois o patrão logo aumentava a vigilância e até preventivamente nos castigava, alegando raivosa e cinicamente que aqueles duros castigos eram aplicados para inibir qualquer tentativa de subversão da ordem estabelecida.

Traumatizado pela perseguição a mim imposta pelo meu próprio pai quando ainda criança, sabedor do longo sofrimento de minha mãe e, sobretudo, não desejando retornar para a fazenda e ter que encarar aquele filho de meu patrão a renovar suas armações contra mim, não acatei à exigência para retornar ao engenho, temendo ser novamente submetido ao duro trabalho nos canaviais. Escasseava-se a mão de obra nas propriedades, em face das primeiras leis proibitivas do tráfico negreiro, impostas ao Brasil pelos ingleses. O preço do escravo elevara-se consideravelmente!

A minha ousadia em não querer voltar para a fazenda custaria ao meu pai grave repreensão. Instado pelo autoritário patrão, de surpresa e acompanhado de três capangas, meu pai me resgatou em meio a uma celebração eucarística, conduta logicamente reprovada pelo padre protetor, mas que, dada a sua impotência para reagir a tão arbitrária ação, eu sucumbi nas mãos de meus algozes. Apanhei durante toda a viagem de retorno a fazenda. Castigo que foi renovado quando da minha chegada, diante da assustada audiência dos demais escravos e das cínicas louvações do filho infeliz do desumano patrão. Padeci no pelourinho cinqüenta chibatadas e fiquei dez dias sob constante vigilância, enclausurado na senzala, tendo meus pés rudemente acorrentados e ainda suportar as visitas diárias do cínico Sinhozinho.

O ódio que nutria por aquele sujeitinho enfermo, verdadeiramente uma criatura desnaturada, com o qual eu crescera, desde os primeiros dias de minha triste infância, passando pela minha sofrida adolescência, transformou-se em incontrolável obsessão. Curei as chagas do meu corpo contando os dias, as horas e os segundos para friamente materializar a minha vingança. Custasse ela até mesmo a minha vida, acaso não obtivesse sucesso na planejada fuga, eu teria de executá-la, nem que fosse apenas pela paga das dores vivenciadas por minha mãe.

Creio que agora, menina Clara, entenderá meu retraimento a sua pessoa e porque tão indesejada para mim é a sua presença. Passarei, agora, a relatar o meu crime, em função do qual fugi para tão longe, escondido num porão fétido de um velho bergantim, naufragado nessa maldita baía.

Numa tarde sombria em que muitas nuvens negras cobriam o céu da fazenda e o vento assustadoramente açoitava o canavial, os feitores, temendo certamente o descarrego da tempestade que se anunciava, apitaram sinalizando o término do nosso desumano trabalho. Mas, apesar do cuidado daqueles fieis empregados, a chuvarada sorrateiramente se precipitou sobre todos nós, acompanhada de relâmpagos e trovões. A escravaria correu para todos os lados. Alguns cativos buscavam ingenuamente proteção que, na verdade, não existia, mas outros, como eu, aproveitando-se da rara oportunidade que aquela confusão ofertava, intentaram a fuga desesperada. Foi um “Deus nos acuda”.

Atordoados, os feitores não sabiam se salvavam suas próprias vidas da ação cada vez mais perigosa dos raios, pois dois escravos já haviam sido fulminados pelas descargas elétricas da natureza em revolta, ou se perseguiam os negros que se evadiam pelos meandros sinuosos dos canaviais. Em meio àquela balbúrdia que parecia não ter fim, ouvi, ao lado de três companheiros de fuga, vários tiros bem próximos ao local em que estávamos escondidos. Ao se aproximarem os estampidos daquela carga perseguidora, reconheci na montaria o desgraçado Sinhozinho de arma em punho, a gritar loucamente e a mirar nos escravos que ainda tentavam fugir. Para seu infortúnio e sorte minha, o cavalo do sujeitinho, refugando a poucos metros da cerca, atirou violentamente seu cavaleiro ao chão, onde caiu desacordado. Então, calmamente saí do mato, despreocupado, inclusive, com a possibilidade de ser avistado por algum outro capanga do senhor, aproximei-me do corpo desfalecido do Sinhozinho e pegando de seu próprio armamento, mirei em sua testa e antes de descarregar toda a munição, disse-lhe estas palavras:

Ah Cabra Infeliz! Receba essa carga vingadora e vá para os quintos do inferno”.

Sem pestanejar disparei todos os tiros que a arma pode cuspir na cara daquele sujeito desqualificado. Em seguida, pus a arma em seu peito e desapareci. Passei quase dez dias metido na mata, padecendo fome, sede e frio. Fui picado por uma infinidade de insetos peçonhentos e me debilitei com as febres. Tive a sorte de encontrar um negro fugido da propriedade, que me auxiliou a chegar numa praia deserta, na qual ele afiançava que algumas embarcações transitavam realizando transações de açúcar, aguardentes e muitas outras quinquilharias ansiadas, em especial, pelas mulheres, a exemplo de panos da costa e vários tipos de pimenta. Embarcamos clandestinamente num desses bergantins portugueses. Muito pelejamos porque navegamos escondidos em seu porão apinhado de mercadorias estragadas, as quais nós devoramos para saciar a fome, todavia sofremos as danosas conseqüências. Meu parceiro pereceu no navio. E eu, apesar de seriamente debilitado, guiado pela mão divina, salvei-me milagrosamente quando a embarcação, ao adentrar sob forte tempestade nessa profunda e misteriosa baía, chocou-se contra as pedras e, com impensável rapidez, afundou.  

Desde então me recolhi neste abandonado farol, que se transformou em minha moradia. Aqui me isolei, pois o meu crime fora testemunhado pelos outros capangas que acompanhavam o maldito e vitimado Sinhozinho e eu sabia que a perseguição do patrão, ou seja, do velho e malvado Senhor a minha pessoa não seria interrompida enquanto eu não fosse recapturado e o meu corpo friamente massacrado no pelourinho de sua rica propriedade.

Portanto, menina Clara: aqui confesso que a vítima do meu crime, do qual não me arrependo, foi o seu inditoso e mais velho irmão, o Sinhozinho Requião. A minha fuga e isolamento nesse farol se deve à ferina e insistente perseguição do Senhor Requião Baptista, o seu famigerado progenitor!

Compreendi o porquê da sua insistência quando deseja alcançar um objetivo qualquer. Teve a quem puxar na vida! Não direi que lamento pela morte de seus pais, pois estaria cinicamente mentindo. Colheu o que violentamente plantou! Mas lamento pela sua avó, Dona Júlia e, sobretudo, por você, que me parece ser uma boa menina. Infelizmente, não poderemos conviver sob tanta vulnerabilidade. Como não sou um assassino profissional – aqui lhe relatei as justas razões do meu único crime -, não podendo e nem querendo matá-la, tenho que partir, inclusive para não ser morto quando provavelmente for descoberto.

Que Deus lhe proteja!
João Crisóstomo.

Duda não se conteve. Chorou copiosamente, lamentando o triste desenlace que envolveu e afinal severamente castigou aquelas duas criaturas que, premidas pelos seus dramáticos destinos, poderiam pintar com suaves, harmônicas e mais belas cores as suas difíceis existências, espantando os fantasmas que tanto tempo assombraram as suas vidas.

O sossego da Ilha do Farol seria novamente alterado três meses após os afogamentos de Clara e do Véio Sombra. Um grupo de negros africanos surpreenderia àquela gente pacata adentrando a baía a bordo de três combalidos veleiros. Alguns, que pareciam ser os líderes, portavam dorsos em suas cabeças e escapulários em seus pescoços. Apesar de seus precários estados físicos, andavam com as suas cabeças erguidas e mantinham firmes seus olhares nos primeiros contatos. Chegaram famintos e estropiados. Após o desconfiado acolhimento, a comunidade do Funil compreendeu que eram negros islamizados, alcunhados Malês, que milagrosamente sobreviveram ao massacre contra eles perpetrado pelas forças policiais, já que fazia pouco mais de um ano (janeiro de 1835) que aqueles negros lutadores, letrados e conscientes de sua religiosidade e força haviam protagonizado um dos mais famosos levantes de escravos na Colônia, que ficaria reconhecido como a Revolta dos Malês, verificada em Salvador da Bahia.

Mas o que realmente contribuiu para um valoroso aprendizado, como exemplos a serem seguidos, ou mais particularmente como traços fundamentais de caráter para guiarem os comportamentos e condutas, principalmente para Duda e Letícia, foram a perseverança, a coragem e o otimismo de Clara. Uma adolescente que nunca teve medo de expressar seus sentimentos, de perseguir seus objetivos e, muito especialmente, de viver a vida intensamente.


Roberto Dantas

Janeiro/15.