sexta-feira, 8 de abril de 2016

O BACHAREL

O BACHAREL

Invariavelmente, dava-se a visita ao cair da tarde, quando, bem mais amenos, os raios do sol deitavam no horizonte. Ao chegar, circunspecto e silencioso, Dr. Cícero retirava seu chapéu de pequenas abas e se acomodava no último banco da modesta capela. Interessante era o rigor do horário: sempre quinze minutos antes do Padre Caetano proceder ao início da missa. Mais rigoroso e intrigante era o horário da partida: no momento da comunhão. Jamais recebeu a benção final da celebração, o que muito incomodava às beatas, gerando reprovações religiosas. Corriam os últimos anos da década de cinqüenta e a sociedade brasileira experimentava, após sérias conturbações políticas, inclusive o dramático suicídio de seu presidente, o exagerado otimismo difundido pelo governo de Juscelino Kubitschek. Desenvolvimentismo, modernidade, Bossa Nova e Brasília: eis as expressões e bandeiras exaltadas naquele contexto.

Era, de fato, um cidadão estranho. Dr. Cícero Toledo de Andrade. Apesar de nascido na Fazenda Memorial, proximidades da Vila da Praia – diminuta povoação contígua ao Distrito de Olivença, que, por sua vez, pertencia administrativamente à famosa Ilhéus dos abastados coronéis do cacau -, dela se apartara tão logo feito homem, enviado pelos pais para estudar na capital federal, a já glamorosa cidade do Rio de Janeiro. Tempos em que sua família dispunha de recursos materiais e desfrutava de considerável prestígio político na região cacaueira.
Filho único, Dr. Cícero teve uma infância protegida, sem amigos. Jovem, era recatado e de poucas palavras. Dizia-se, à boca miúda, ser um sujeito arredio. Em quase nada se assemelhava aos genitores. Nem física, sobretudo com relação ao pai, e nem socialmente. Durante o longo período de afastamento, computando-se os estudos e o exercício da profissão advocatícia, cuja soma perfazia vinte anos, raras vezes visitava a Fazenda, o que apenas se dava quando dos festejos natalinos, dias, entretanto, em que se mantinha alheio aos contatos com os seus conterrâneos, primos e demais membros da família. Limitava-se, de quando em vez, a breves conversas com a sua irmã adotiva, sobre quem, logo adiante, se tratará. De fato, pouco se sabia de suas experiências profissionais no sul e muito se especulava acerca da sua vida pessoal.
O retorno deste intrigante cidadão deu-se por motivo grave, vale dizer uma obrigação. Justamente quando completara 42 anos e pouco mais de duas dezenas de residência na alcunhada cidade maravilhosa, seus pais, ensejando viagem de passeio ao norte do estado, vitimaram-se, fatalmente, num desastre de grandes proporções. Tendo saído o casal de Ilhéus para Salvador, nesta capital marido e mulher ingressaram no trem da Companhia Leste Brasileiro, com destino à cidade ribeirinha de Juazeiro, aprazível localidade banhada pelo majestoso Rio São Francisco, onde alguns baianos se recolhiam para gozo de férias, oportunidade em que também, navegando pelas ditosas águas do chamado “rio da integração nacional”, aportavam na não menos bela Petrolina, cidade pertencente ao estado de Pernambuco. Entretanto, a locomotiva drasticamente explodiu na bucólica Estação de Serrinha, matando a maioria de seus passageiros, como, também, a alguns residentes daquela religiosa e simpática cidade sertaneja. Comoção geral!

Carecia, portanto, o recatado bacharel assumir os negócios do pai, dar cabo das duas grandes fazendas de cacau, da outra de gado e, ainda, administrar alguns poucos imóveis alugados em Ilhéus, constituindo-se, tais bens, no espólio familiar. Necessário ressaltar que tão logo partira, ainda quando jovem, para envidar seus estudos no Rio de Janeiro, seus pais – Coronel Antero Castro de Andrade e Maria Madalena Correia de Toledo Andrade – adotaram uma criança de dez anos como filha, talvez para suprir a falta do único herdeiro. Chamava-se Verônica e, ao contrário do filho afastado, era uma menina alegre, prestativa, expansiva de comportamento e benquista por todos. Transformar-se-ia, quando da volta do Dr. Cícero, na sua fiel companheira, na verdade a única criatura com quem este reservado bacharel permitia confabulações. A partir desse reencontro, intrigantes revelações se dariam.
Velhos tempos, velhas desconfianças! Razão do renitente comportamento reservado de Cícero desde quando morador da Fazenda Memorial – tempos da infância e da adolescência – e enquanto inexpressivo partícipe dos festejos na Vila da Praia, não raro ausente, os mais achegados amigos de seu pai, bem como muitos dos parentes próximos, todos, enfim, comentavam sobre a conduta pouco amistosa do filho do Coronel Antero. Comentários que atrelavam a esta pobre expressividade de gestos e de palavras as perceptíveis discrepâncias físicas entre pai e filho. O Coronel, além de falante e dono de um temperamento agitado, trazia a tez morena, quase acaboclada, diferentemente da pele alva, dizia-se quase transparente do seu único e estranho filho. O Coronel, em especial, era presença freqüente e destacada nas várias efemérides que se davam nas cercanias. Com o correr dos anos, falatório que progressivamente gerava, sem zelos, incômodas suspeições.

Os sepultamentos do Coronel e de Dona Madá – assim carinhosamente tratada por todos - tiveram, como previsto, grande audiência. Até o Bispo se fez presente para recomendação das almas. Solene missa na intenção dos defuntos teve lugar na capela da Fazenda Memorial, secundada por grande e silencioso préstito até o cemitério da Vila da Praia, por sinal campo santo criado e fundado pelo Capitão Andrade, então o avô do bacharel Cícero. Durante muito tempo outro não foi o assunto nas pequenas tendas e biroscas da Vila e, do mesmo modo, nas rodas e encontros políticos na cidade de Ilhéus. Aliás, vários deputados e o próprio prefeito da atrativa cidade cacaueira fizeram-se presentes às cerimônias fúnebres, quando lamentaram o precoce e violento passamento do prestigioso casal.

Para o Dr. Cícero, além da perda dos pais, e mais particularmente da mãe, a mudança significava delicada adaptação a um mundo com o qual, na real, nunca se identificara e, por isso mesmo, poucas vezes e de forma discreta fizera-se presente. Mais ainda: não era de sua competência e gosto administrar produções de cacau, criar e negociar rebanhos de gado ou, ainda, cuidar de imóveis e de alugueis. Era homem urbano e afeito tão somente ao estudo das leis. E foi nesta mudança cruciante de vida que Verônica, sua irmã postiça, teria valorosa participação, na medida em que, com o passar do tempo e as naturais necessidades de condução daqueles negócios, se tornaria, de fato, a competente gerente dos diversos bens da enlutada família. Dr. Cícero, por outras razões de cunho afetivo, também padeceu profunda tristeza pela premente necessidade de deixar, sorrateiramente, a cidade do Rio de Janeiro.
A aproximação com Verônica resultaria, para o bacharel, conseqüências inimagináveis, pois a amizade contraída com a irmã adotiva se solidificou e naturalmente ensejou uma relação de confiança e intimidade jamais por ele experimentada. Verônica, de atuante assessora dos negócios e parceira de todas as horas, tornou-se, rapidamente, sua confidente. A jovialidade de seus trinta anos ao mesmo tempo acolhia e rebatia a melancolia renitente dos quarenta e poucos do bacharel. E essa nova e respeitosa relação, que tão somente as verdadeiras amizades desfrutam, permitiria a retirada de todos os véus que encobriam a vida “misteriosa” desse estranho bacharel.

Eis os fatos.

Conquistada a amizade do irmão, conquista inegavelmente fundamentada na honestidade de sua conduta, Verônica, ainda que sutilmente, provocava conversas atinentes às experiências do bacharel no Rio de Janeiro, à vida movimentada da exuberante cidade, mais detidamente acerca do seu povo e da profissão escolhida. Sobretudo, escutava com dedicada paciência aos relatos do Dr. Cícero. Esta postura respeitosa muito contribuiu para auferir a confiança desejada. Aproveitava esses papos mais íntimos, tidos geralmente após as ceias na boca das noites, e também contava de sua vida, das dificuldades enfrentadas pelos seus pais biológicos para a criação dos filhos, já que empregados de fazenda, subjugados pelos autoritários e avarentos patrões. Confessava, repetidas vezes, a imensa gratidão sentida pelos pais adotivos, em memória dos quais, inclusive, encomendara dezenas de missas.
Na data em que o Dr. Cícero aniversariava, como de costume sem regalos, Verônica sugeriu-lhe um passeio para Ilhéus, onde, segunda ela, provariam de um bom vinho e apreciariam a bela orla da cidade. Tendo relutado de início, o bacharel aquiesceu ao pedido da irmã e, para surpresa dos empregados e agregados da fazenda, vestiu um de seus paletós de trabalho – encalhados desde o sepultamento dos pais -, solicitou os serviços de Seu Olegário, que antes de se transformar em motorista da família cuidava dos animais e ferramentas da grande propriedade, e braços dados à alegre irmã tomaram, juntos, o rumo da cidade-sede do cacau.
Após comes e bebes e alguns poucos encontros dispensáveis com personalidades que também se encontravam no restaurante escolhido, já altas horas da noite, o bacharel embriagou-se. Não era dado a beberagens. Com a ajuda de Seu Olegário e de dois prestativos garçons, Dr. Cícero foi levado para a pensão na qual previamente, logo que chegara à cidade, havia reservado três quartos para o consequente pernoite. Ali, na varanda daquele modesto e acolhedor estabelecimento, enquanto curava os efeitos de sua farra etílica, o bacharel desatou a chorar e, aos poucos, tendo disponíveis a apurada atenção e o ombro amigo da sempre solícita irmã postiça, pôs para fora seus segredos. Foi um duro e comovente relato, permeado de dramáticos acontecimentos familiares e por uma confissão certamente inesperada para a receptora.

Sensibilizada, Verônica empalideceu ao saber, da boca do próprio irmão, de duas graves acusações, respectivamente direcionadas ao falecido Coronel Antero e a sua amantíssima esposa. Ao final, tomaria conhecimento do drama particular do irmão.

Dr. Cícero, entre soluços incontroláveis, asseverou à Verônica que, quando criança, escondido no corredor e bem posicionado próximo à alcova dos pais, escutara, em algumas oportunidades, altercadas discussões do casal, as quais, geralmente, se davam consonantes à presença do Tio Herculano na Fazenda Memorial. Tratava-se do irmão do Coronel Antero e que lhe devotava exagerado sentimento protetor. Ele pouco retribuía a e até confessou não aturar muito aqueles mimos. Na verdade, o que sentia era a carência afetiva do pai, mal recompensada, portanto, pela incômoda atenção disponibilizada pelo referido tio. Sobre sua mãe, apesar do que descobrira, nenhuma reclamação esboçava.

Eis o caso: numa madrugada de chuva torrencial, tendo chegado encolerizado à fazenda, o Coronel irrompeu no quarto em que já dormitava Dona Madá e, aos gritos, passou a espancá-la ferozmente. Despertado pelos pedidos desesperados de clemência da mãe, disse que em vão tentou defendê-la, momento em que recebeu um violento tabefe do Coronel, acompanhado de um adjetivo antes jamais a ele direcionado: “chispa daqui seu infame bastardo!”. Não havia como interceder junto ao pai avantajado e enraivecido. “Vagabunda” era o principal e tantas vezes repetido xingamento proferido pelo Coronel, sacolejando a sua acuada esposa. Cenas deprimentes para uma criança indefesa.

Com a chegada de Dona Diná, a velha cozinheira da casa, e do finado Seu Gervásio, caseiro e cocheiro do ali endemoniado Coronel, Cícero foi retirado do quarto e levado para o corredor. Daí, entre soluços e graves receios, ouviria, por fim, a grave acusação do pai no bojo de uma revelação impensável de ser ouvida. Era, portanto, o mote de toda aquela incontrolável cólera paterna: “Adúltera miserável! Este filho da sua leviana prevaricação será por mim renegado por toda a vida! E se até hoje, sem saber, ele dispunha de dois pais, um falso que sou eu e um canalha que lhe é pai verdadeiro, hoje ficará órfão de ambos! Mandei aquele mau caráter para os quintos dos infernos, aliás, para onde deveria encaminhá-la também. Mas tenho uma honra a preservar! Ninguém e nem você, e muito menos aquele irmão traidor e degenerado, terá o direito de macular a minha história! Vagabunda!”. Cícero mal havia completado cinco anos de idade. De uma só vez, saberia da mãe adúltera, do tio traidor e do pai assassino. Máculas indeléveis! Erros irreversíveis!

Para Verônica, estava de certo modo explicada toda a estranheza perceptível na conduta daquela criatura ensimesmada, que se perpetuara, afinal, por toda a sua vida. Também entendidas as diferenciações físicas e de comportamento entre pai e filho, as quais sempre pautaram as suspeições dos mais achegados à família Toledo de Andrade. Porém, aquelas inesperadas e bombásticas revelações ainda ganhariam mais dramaticidade. Dr. Cícero, olhos marejados, fitando corajosamente a querida confidente, com uma clareza nunca antes exercitada quando de suas conversas, firmemente confessou: “Sou um infeliz pervertido! Não porque me envergonho da minha condição. Pois essa vergonha, de fato, é inaceitável. Mas, sobretudo, porque, premido pelas circunstâncias das mortes dos meus não menos infelizes progenitores, tive que abandonar o meu querido parceiro, o qual, ceifado por um desenfreado inconformismo, suicidou-se. São esses, minha cara irmã, os meus inesquecíveis dramas e torturantes receios! Não há correção para a minha inditosa trajetória de vida”.

Sensibilizada, lágrimas umedecendo-lhe a face, Verônica acolheu ao irmão em seus braços e atrelados permaneceram por longos minutos. Nenhuma palavra foi pronunciada. Dois seres ali, através de um sincero e desejado abraço, buscavam a paz, o consolo, a resignação. Nunca mais seriam os mesmos.
No curso de três semanas, Dr. Cícero empreendeu longa viagem ao exterior. A tudo abandonou. Após onze meses do seu sumiço, retornando ao Brasil, endereçou breve carta à Verônica, na qual agradecia toda a dedicação da irmã e informava do seu novo paradeiro: a cidade de São Paulo. Na referida missiva, confessou padecer alguns problemas de saúde, realidade que determinara, afinal, a escolha pela terra bandeirante. Na Paulicéia, entretanto, não lograria êxito na retomada de sua profissão. Talvez por isso, ou provavelmente pelo conjunto das adversidades que solitária e drasticamente enfrentou no transcorrer da sua atribulada vida, a exemplo do parceiro inconformado, passados dois anos de desilusões, também daria cabo da sua existência, projetando-se de um arranha-céu da agitada metrópole.

Verônica, que muito lamentara a partida inesperada de seu irmão adotivo para o exterior, sofreria ainda mais com a notícia de seu precoce e dramático passamento. Vencidos os sofrimentos, razão de sua inegável capacidade para reagir as desditas da própria vida, deu prosseguimento, por muitos anos, à gerência competente dos negócios herdados e, por merecimento, teve uma morte tranqüila, já idosa, amparada pelos amigos e admiradores. Antes de sua derradeira partida, cuidara, com extremo carinho, de várias crianças despossuídas na creche que então fundara nas cercanias da Fazenda Memorial. Intrigante coincidência: o seu falecimento dar-se-ia na mesmíssima data em que nascera, tempos atrás, o adorado irmão postiço, o estranho bacharel.


POESIA DO SONHO


Ali sentado à beira do belo açude,
negociei com o sono enquanto pude
ouvindo os sibilos ditados pelo vento.
Nessas plagas em que deita a harmonia
um lindo sonho fez-me a serventia
de esquecer das armadilhas do tempo.

Sonhei o sonho das loucas viagens,
enveredando-me pelas ternas paragens,
transportado pela musa dos meus escritos.
Nele me aparecia vestida de branco,
desenhando o tímido sorriso franco
em seus lábios rubros tão bonitos.

Mirei, sedento, a silhueta feminina,
lépida, quase voando, uma menina
revestida por uma auréola estelar.
Era a deusa dos meus pobres cantos,
a fada rainha que traria os encantos
para o meu coração descompassar.

Colhido fui para o mundo desconhecido,
aos seus cabelos anelado e embevecido
que nem a minha respiração eu conduzia.
Nos meandros das transparentes brumas
pude dos céus apreciar as espumas
do grande lago que a nós dois seduzia.

Mergulhamos, atados, nas águas profundas,
num recôndito de vivências fecundas,
num espectro de silêncio e ternura.
Recarregados por uma energia singular,
retornamos, a sós, para o sagrado altar
desse sertão que a todos nós cura.

A poesia nua revela a inquietude,
o canto afinado desvela a atitude,
o sonho de amor enseja a fantasia.
Eis a musa, a deusa, a fada rainha,
esculento dos versos em que se aninha
a minha sede de paz e de harmonia.